Linha fina: Depois que o Banco Central emitiu a Consulta Pública nº 111/ 2024 com propositura de proibição para as empresas cripto sediadas no Brasil transferirem Ativos Digitais Criptografados para carteiras autocustodiadas por pessoas no exterior, vieram as discussões que desencadearam na apresentação do Projeto de Lei nº 311/2025 de autoria da deputada federal Júlia Zanatta (PL – SC). Cabe saber, contudo, o contexto tanto da Consulta Pública do Bacen bem como da propositura legislativa.
A deputada federal Júlia Zanatta (PL) apresentou na quinta-feira (6) o Projeto de Lei nº 311/2025, que dispõe sobre a “proteção ao direito de autocustódia de Ativos Virtuais”. De acordo com a justificativa da propositura, os indivíduos devem ter assegurado seu direito essencial de custodiar por elas mesmas os próprios Ativos Digitais Criptografados sem a necessidade de quaisquer intermediários.
A questão por trás deste projeto de lei adveio de uma discussão sobre o risco de órgãos como Banco Central do Brasil (Bacen) restringir a custódia feita pelos próprios detentores de tais ativos, por meio de suas Cold Wallets (carteiras autocustodiadas).
O pivô deste debate sobre o risco de proibição de autocustódia do Bitcoin e outros Ativos Digitais Criptografados foi justamente a redação do art. 76-F da Consulta Pública nº 111/2024 do Bacen.
O art 76-F determina que “é vedado à prestadora de serviços de ativos virtuais efetuar transmissão de ativos virtuais para carteira autocustodiada detida por não residente”. Isso consequentemente, retira a possibilidade de as Exchanges e OCTs enviarem Ativos Digitais Criptografados para fora do país.
O mercado se mostrou bastante preocupado com o que poderia estar por vir. Falou-se que a autarquia especial federal responsável pela emissão de moedas e controle monetário do país visava proibir a autocustodia de criptoativos como Bitcoin, stablecoins e outras espécies de Ativos Digitais Criptografados.
Regulamentando os Ativos Digitais Criptografados
Para efeito de contextualização, vale recordar que o Banco Central foi eleito pelo Poder Executivo Nacional (Presidência da República) como o órgão que autorizaria, fiscalizatória e criaria regras para as empresas prestadores de serviços em Ativos Digitais Criptografados, por meio do Decreto nº 11.563/2023.
Essa normativa, portanto, era nada mais do que uma regulamentação da Lei nº 14.478/2022. Essa regulação ficou conhecida como “Marco regulatório dos criptoativos” apesar de estabelecer normas gerais para as prestadoras de serviço em “Ativos Virtuais” (termo escolhido pelo legislador ao invés de Ativos Digitais Criptografados ou Ativos Digitais et cetera). A questão é que essa lei não havia estabelecido qual seria a autoridade reguladora e que isso caberia ao chefe do executivo nacional, nos termos do art. 6º da Lei nº 14.478/2022.
Deste modo, em 13 de junho de 2023 veio o Decreto nº 11.563/2023 estabelecendo que o Bacen seria o órgão responsável pela supervisão e regulamentação do funcionamento dessas empresas prestadoras de serviços em Ativos Digitais Criptografados. Isso, contudo, não afasta a competência da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) atuar quando houver o uso de tais ativos como valor mobiliário, conforme está no art.
Consulta Pública do Bacen e os Ativos Digitais Criptografados
O Banco Central do Brasil, já como órgão regulador das “prestadoras de serviços de ativos virtuais”, emitiu no exercício de sua competência a Consulta Pública nº 111/2024. E ela tem dado o que falar principalmente ao que tange os artigos 76-F; 76-G e 76-N, os quais aludem:
“Art. 76-F. É vedado à prestadora de serviços de ativos virtuais efetuar transmissão de ativos virtuais para carteira autocustodiada detida por não residente.;
Art. 76-G. A prestadora de serviços de ativos virtuais deve implementar processos específicos para verificar a origem dos ativos virtuais transmitidos a partir de carteira autocustodiada pertencente a não residente.;
[…]
Art. 76-N. É vedado à prestadora de serviços de ativos virtuais efetuar transmissão de ativo virtual denominado em moeda estrangeira para carteira autocustodiada”.
A maior crítica é direcionada ao art. 76-F por, justamente, vedar a “prestadora de serviços de ativos virtuais efetuar transmissão de ativos virtuais para carteira autocustodiada detida por não residente”. Há a interpretação de que tal cláusula tende a proibir a autocustódia de Ativos Digitais Criptografados, o que afetaria consequentemente o princípio constitucional à privacidade e intimidade — art. 5º, X, da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 (CRFB/1988) — bem como à proteção de dados pessoais — art. 5º, XII, da CRFB/1988. Além disso, os críticos apontam que a medida afeta a livre iniciativa nos termos do art. 170 da CRFB/1988.
Reação do Parlamento
Diante dessas críticas e discussões no mercado, a Câmara de Deputados acabou recebendo uma propositura legal que deve alimentar mais ainda as discussões. A deputada federal Júlia Zanatta (PL) apresentou então o Projeto de Lei nº 311/2025, que dispõe sobre a “proteção ao direito de autocustódia de Ativos Virtuais”.
Na justificativa do PL de apenas três artigos, consta que a “autocustódia de ativos virtuais é um direito essencial que assegura aos indivíduos o controle direto sobre seus próprios bens digitais, sem a necessidade de intermediários”.
Mas será que a Consulta Pública do Bacen representa toda essa ameaça, como é mencionado por críticos no mercado? Não seria uma preocupação um tanto preciptada?
Consulta Pública é norma?
O Banco Central do Brasil emitiu a Consulta Pública nº 111/2024 no exercício de sua competência. Isso é inquestionável. A questão, contudo, em torno da celeuma é que os defensores afirmam que se trata de maior alinhamento com práticas internacionais de prevenção a crimes financeiros. Em outras palavras, uma medida protetiva contra lavagem de dinheiro e evasão de divisas, o que facilitaria uma governança global ou melhor diálogo entre diversas entidades transnacionais.
Por outro lado, há os críticos que defendem a ideia de que tais propostas colocam em xeque o direito de liberdade de mercado. Além disso, sustentam que o direito de propriedade sobre os Ativos Digitais Criptografados estaria sendo violado. Essa visão, consequentemente, ensejou no PL nº 311/2025.
O fato é que a Consulta Pública não se trata de uma norma “per se”. Ela seria, portanto, apenas um corpo de proposições para uma construção regulatória. Em outras palavras, trata-se de um mecanismo de participação social. Por meio dessas consultas públicas se coleta sugestões, críticas e comentários sobre propostas de normas ou regulamentos antes de sua implementação definitiva. A Administração pública, destarte, se submete a sua propositura ao escrutínio popular.
Cenário possível
Em que pesem as críticas, não parece, “a priori”, que o art. 76-F acabará com a liberdade de pessoas residentes no Brasil de fazer a autocustodia de criptoativos e stablecoins. Não há, portanto, a proibição desse indivíduo enviar da própria carteira autocustodiada tais ativos para cold wallets de pessoas residentes em países estrangeiros.
O conteúdo do art. 76-F não atinge o autocustodiante residente no Brasil. Entretanto, os artigos 76-F, 76-G e 76-N podem prejudicar as empresas brasileiras prestadoras de serviços de Ativos Digitais Criptografados. A questão da livre iniciativa, portanto, é algo que tem de ser acompanhada. Isso porque as Exchanges brasileiras terão mais encargos sobre o compliance. A tendência será, por fim, de as empresas brasileiras não terem a mesma competitividade com outras estrangeiras que possam ainda fazer as transferências para carteiras autocustodiadas de não residentes. Apontamentos esses, a propósito, pertinentes trazidos pelo advogado Pedro Torres.