Potencializar o retorno de projetos que visam o desenvolvimento de comunidades carentes. Esse é um dos grandes objetivos das chamadas “moedas locais”, instrumentos capazes de fazer com que cada R$ 1,00 investido numa comunidade tenha o potencial de impactar dezenas de pessoas na mesma localidade e não só a pessoa que recebeu o investimento inicial.
O conceito é antigo e existem milhares de exemplos de moedas locais experimentadas no mundo. A novidade é que um brasileiro mostrou, em palestra realizada no Banco Central Europeu, que a tecnologia das criptomoedas pode ajudar as moedas locais a funcionarem ainda melhor e facilitar a criação de projetos desse tipo, inclusive por meio de integrações internacionais.
A proposta foi feita pelo educador e desenvolvedor de blockchain brasileiro Yakko Majuri em palestra realizada no último dia 26 de julho, em Frankfurt, Alemanha, no “P2P Financial Systems International Workshop”. Yakko é co-fundador da BlockchainBH e responsável também pela Certify, cartório digital baseado em blockchain, que oferece uma série de serviços.
O desenvolvedor explica que houve uma chamada pública do grupo que organiza o workshop para quem quisesse participar do evento. Como Yakko já pesquisa há bastante tempo as pontes entre moedas locais e criptomoedas, ele escreveu um paper para mandar, foi selecionado pelo banco e realizou sua apresentação.
O que são moedas locais
Imagine que você é uma prefeitura e tem R$ 10 mil para investir no desenvolvimento de um bairro carente. Neste caso, emprestar os recursos para um microempreendedor do bairro pode ser uma boa ideia, pois isso pode gerar um negócio lucrativo na própria comunidade, certo?
Agora, imagine se houvesse uma forma de garantir que todo esse dinheiro fosse gasto na própria comunidade, comprando somente produtos e serviços oferecidos por moradores da própria região? Os R$ 10 mil valeriam muito mais para o desenvolvimento da comunidade, não é mesmo?
Essa é a ideia que está por trás das moedas locais, a possibilidade de fazer com que um recurso investido em uma comunidade – seja ele vindo do governo, de ONGs ou qualquer outra forma – continue na própria comunidade, fazendo com que muitos habitantes sejam favorecidos e desenvolvendo de forma mais intensa a economia local.
No Brasil, o mais antigo exemplo de moeda local vem do Banco Palmas, banco solidário criado pela comunidade dos Palmeiras, em Fortaleza (CE). Com mais de 20 anos de atividade, o banco evoluiu suas formas de atuação, oferecendo inicialmente um cartão com crédito local, depois passando a emitir uma moeda local que teve grande circulação e impacto em toda a comunidade.
Criada em 2002, a iniciativa deu tão certo que chamou negativamente a atenção do Banco Central do Brasil. Porém, após diversos conflitos, a situação acabou culminando na regulamentação das moedas locais no Brasil.
Entre as características estabelecidas para uma “Moeda Social Circulante Local”, nome oficial dado às moedas locais, estão: a) lastreada em moeda nacional; b) indexada com base na moeda nacional; c) de livre aceitação; d) de circulação restrita; e e) que permita o câmbio.
Segundo Yakko, a iniciativa do Banco Palmas permitiu que o gasto dos recursos investidos na própria comunidade passasse de 20% antes da moeda local para uma média estável de 93% durante sua atuação. Ou seja, a grande parte do recurso passou a beneficiar a comunidade.
Yakko explica que o intuito das moedas locais é “complementar o sistema monetário macro, sem substituir, mas trazendo um sistema que faz mais sentido, que permite a manutenção dos gastos na comunidade”. Entre as vantagens desse tipo de iniciativa, ele cita que ela “beneficia a união das pessoas da comunidade, permite um microcrédito com custo mais barato e estimula a comunidade a gastar ali dentro”.
Criptomoedas como moedas locais
Em seu trabalho, intitulado “Overcoming Economic Stagnation in Low-Income Communities with Programmable Money” e disponível online, Yakko debate o quanto a tecnologia das criptomoedas pode ser positiva para ajudar as moedas locais a atingirem seus objetivos.
Para isso, Yakko propõe uma experiência de implantação utilizando um token da rede Ethereum que, por meio da tecnologia de contratos inteligentes, permite uma série de benefícios que facilitam a implantação de iniciativas de moedas locais.
Benefícios de criptomoedas como moedas locais
- Transparência e descentralização. Segundo pesquisa apresentada por Yakko, a falta de transparência e a dependência de um agente centralizador são dois fatores que atrapalham muito a implantação de moedas locais. A blockchain, mecanismo transparente por excelência, contorna muito bem essa dificuldade, permitindo ainda uma governança distribuída. Isso não exclui a necessidade de uma entidade física, como a utilizada no caso do Banco Palmas, mas permite uma governança muito mais estruturada e com processos bem definidos.
- Facilidade de criação e menor custo. No caso de uma moeda baseada em papel “é extremamente difícil verificar com precisão o valor total do dinheiro em circulação, bem como inspecionar transações é uma tarefa impossível”, explica Yakko no paper. Por outro lado, sistemas digitais podem ser projetados para manter o controle de todos os pontos mencionados acima, mas podem ser corrompidos pelo seu administrador”. Mais uma vez, um sistema baseado em blockchain já resolve, por princípio essas duas questões.
- Segurança. Os sistemas atuais digitais enfrentam uma troca importante entre gerenciamento de custos e segurança. “Uma moeda digital pode ser facilmente criada, por exemplo, mas uma moeda local segura exige um fluxo intensivo de recursos para iniciá-la e mantê-la”, afirma Yakko em seu paper. Ao que se pode contrapor o uso dos tokens de criptomoedas: “Se eu crio um token, ele é tão seguro como o Ethereum, programável e compatível”, lembra o desenvolvedor.
- Replicação e integração. Yakko afirma: “Seria de grande benefício para a comunidade global se projetos de moeda local bem-sucedidos pudessem ser replicados, pelo menos em parte, para ajudar o desenvolvimento global do ecossistema”. Ele, entretanto, afirma que o que se tem visto é uma fragmentação dos projetos, ao invés de uma padronização e de iniciativas mais integradas. Na sua concepção, desenvolver as bases de um sistema em blockchain pode permitir uma replicação muito mais rápida dos projetos, só ajustando as questões pertinentes às novas comunidades, bem como permitindo todas as integrações já disponíveis para os operadores de cada blockchain.
- Mecanismos de controle prontos. Como as criptomoedas já lidam com questões básicas do dinheiro – tal qual evitar gasto duplo, garantir segurança e permitir trocas fáceis – fica muito mais simples implementar uma criptomoeda local que criar uma moeda digital ou física do zero. Por exemplo, o controle para que os gastos sejam feitos por indivíduos da comunidade e em estabelecimentos da comunidade é uma questão simples de definição de endereços e permissões.
- Inibição de reserva de valor e de troca por fiat. Uma preocupação importante das moedas locais é fazer com que elas circulem, pois, quando mais elas girarem, mais vão ajudar a comunidade. Outra vez, o uso de criptomoedas facilita a criação de soluções adequadas. Para evitar a reserva de valor e, assim, aumentar a circulação da moeda, é proposta a limitação do número de tokens que cada um usuário pode ter em sua conta. Já para prevenir que haja uma conversão em massa logo no começo do projeto, visto que que a moeda fiat permite ao cidadão uma maior liberdade de gasto, entre as propostas de Yakko está a criação de um mecanismo que só permita que a troca se aproxime de um câmbio 1×1 nos casos em que o cidadão já realizou muitas trocas, em muitos estabelecimentos, e já está há bastante tempo no sistema.
Na verdade, o artigo apresentado por Yakko é bastante minucioso, apresentando de maneira cuidadosa tanto o conceito das moedas locais como a história das criptomoedas. Além disso, ele se estende debatendo outras soluções úteis para as criptomoedas locais, bem como dificuldades possíveis, a exemplo da limitação de transações da rede Ethereum.
Outras vantagens destacadas pelo desenvolvedor são a maleabilidade proporcionada pelas criptomoedas, permitindo que lugares diferentes implementem “da maneira que acharem melhor”. Ele destaca ainda que os projetos podem ser feitos por empresas, mas considera imprescindível o engajamento da comunidade. “Pode ter parceria com o estado, por exemplo, para pagar impostos, mas não é a única forma”, completa.
Em entrevista ao Livecoins, Yakko explicou que, para desenvolvimento do trabalho, sua equipe programou um projeto-piloto pequeno, só mesmo para fazer transações de teste, mas que agora tem planos de implementar uma iniciativa completa no médio prazo.