Artigo escrito em coautoria por Pedro Torres e Spencer Sydow.
A Constituição Federal de 1988, ao estruturar a organização político-administrativa do Estado Brasileiro, consagrou um sistema federativo que distribui competências legislativas e administrativas entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios.
Dentro dessa lógica federativa, a Carta Magna estabelece competências legislativas exclusivas, concorrentes e residuais, cabendo à União legislar privativamente sobre determinadas matérias (art. 22), enquanto os Estados e o Distrito Federal podem legislar concorrentemente com a União (art. 24) ou exercer competência plena na ausência de norma geral federal (§3º). Aos Municípios, por sua vez, é assegurada competência para legislar sobre assuntos de interesse local e para suplementar a legislação federal e estadual no que couber, conforme o art. 30, I e II.
O art. 22 da Constituição Federal, ao elencar as matérias de competência legislativa privativa da União, não contempla, de forma expressa ou implícita, qualquer referência assertiva a ativos virtuais.
Trata-se de um rol fechado que inclui matérias como direito civil, penal, telecomunicações, sistema monetário, política de câmbio, comércio exterior, entre outras — nenhuma das quais comporta, sem grave esforço argumentativo ou extrapolação conceitual, o enquadramento, ainda que abrangente, dos ativos virtuais ou de suas subcategorias de criptomoedas, criptoativos e tokens. Em curtas palavras, matérias atinentes a ativos virtuais não são de competência exclusiva da União segundo o brocardo “Prohibitum Non Reperitur”.
É importante lembrar que o Bitcoin — amplamente reconhecido como a primeira criptomoeda da história — foi proposto apenas em 2008, por meio do whitepaper assinado sob o pseudônimo de Satoshi Nakamoto, ou seja, duas décadas após a promulgação da Constituição de 1988.
Desde então, surgiram diferentes categorias de ativos baseados em tecnologia criptográfica — com ou sem lastro, centralizados ou descentralizados, com finalidades comerciais, financeiras, securitárias, artísticas, entre outras.
Não há, até o presente momento, uma conceituação internacional uniforme e amplamente aceita sobre o que se entende por “ativos virtuais”. O próprio Grupo de Ação Financeira Internacional (GAFI), organismo intergovernamental responsável pela formulação de diretrizes globais de combate à lavagem de dinheiro e ao financiamento do terrorismo, adota uma definição operacional, de caráter funcional: “Ativos virtuais referem-se a qualquer representação digital de valor que possa ser comercializada, transferida ou utilizada para fins de pagamento de forma digital. Não incluem representações digitais de moedas fiduciárias”. Trata-se, portanto, de um conceito orientado à finalidade e não à natureza jurídica do ativo, o que evidencia sua maleabilidade interpretativa. Nesse cenário, cabe a cada jurisdição nacional delimitar os contornos conceituais e normativos próprios, de acordo com seu ordenamento jurídico e seus objetivos regulatórios específicos.
Atualmente, a regulamentação do mercado de ativos virtuais está em processo de construção normativa, sendo a Lei n.º 14.478/2022, popularmente conhecida como Marco Legal dos Criptoativos, o principal diploma legal que busca estabelecer diretrizes para o setor, cabendo ao Banco Central, por força do Decreto n.º 11.563/2023, regular a prestação de serviços de ativos virtuais, bem como autorizar e supervisionar as empresas que prestam serviços no setor (PSVAs ou VASPs da sigla em inglês Virtual Assets Service Providers) – preservadas as atribuições inerentes a outros órgãos, como a Comissão de Valores Mobiliários e a Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil.
Na redação do seu art. 3º, a Lei n.º 14.478/2022 estabelece que ativo virtual é “a representação digital de valor que pode ser negociada ou transferida por meios eletrônicos e utilizada para realização de pagamentos ou com propósito de investimento” e, nos incisos do mesmo dispositivo, estabelece que não são considerados ativos virtuais: I – a moeda nacional e as moedas estrangeiras; II – a moeda eletrônica, nos termos da Lei nº 12.865, de 9 de outubro de 2013; III – instrumentos que proporcionem ao titular acesso a produtos ou serviços específicos ou benefícios provenientes desses produtos ou serviços, tais como pontos e recompensas de programas de fidelidade; e IV – representações de ativos cujos registros, emissão, negociação ou liquidação sejam previstos em legislação ou regulação específica, tais como valores mobiliários e ativos financeiros. Mais um argumento que exclui a competência do artigo 22 da CF.
Para o BCB, ativos virtuais não têm as características de uma moeda, ou seja, de meio de troca, de reserva de valor e de unidade de conta, mas, sim, as características de ativo. Seu valor decorre exclusivamente da confiança entre quem adquire e quem emite, e o risco pelas transações com moedas virtuais é exclusivo dessas pessoas. Portanto, ativos virtuais não integram o sistema monetário nacional. Além disso, ativos virtuais não possuem curso forçado, não integram a política cambial oficial e não se qualificam, per se, como valores mobiliários sujeitos à regulação centralizada pela CVM, salvo quando configurarem contratos coletivos de investimento típicos.
Trata-se, portanto, de um fenômeno econômico-tecnológico de alta complexidade normativa, cuja natureza multidisciplinar desafia os limites tradicionais dos ramos do Direito e exige da dogmática jurídica uma abertura ao diálogo com outras ciências, sob pena de obsolescência interpretativa.
Diante desse cenário normativo ainda em formação e da ausência de previsão constitucional expressa que atribua competência exclusiva à União para legislar sobre ativos virtuais, torna-se jurídica e logicamente sustentável que os Estados não apenas podem, como devem, exercer competência legislativa sobre aspectos relacionados à matéria desde que no âmbito de suas capacidades.
A inexistência de reserva de competência exclusiva da União (CF, art. 22) permite o exercício da competência legislativa plena pelos Estados, nos termos do §3º do art. 24 da Constituição Federal, ao menos enquanto não sobrevier norma geral federal sobre aspectos específicos do tema.
A pertinência constitucional da atuação dos Estados em matéria de ativos virtuais já encontra respaldo em iniciativas legislativas concretas.
O Projeto de Lei n.º 267/2025, apresentado na Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul pelo Deputado Prof. Claudio Branchieri (Podemos-RS), autoriza o ente federado a receber pagamentos de débitos tributários e não tributários por meio de ativos virtuais. Na mesma linha, em fevereiro de 2025, o deputado Alex Redano (Republicanos-RO), presidente da Assembleia Legislativa, apresentou uma indicação formal ao Poder Executivo sugerindo a autorização para o pagamento de débitos estaduais com ativos virtuais, acompanhada de minuta de projeto de lei.
Ainda que sejam propostas em fase preliminar, as iniciativas reforçam o movimento crescente de adesão subnacional às diretrizes do ecossistema de ativos virtuais e evidencia a possibilidade jurídica de que os Estados não apenas podem, como já vêm exercendo competências próprias sobre a matéria.
Além de propostas dessa natureza, é plenamente legítima — e politicamente estratégica — a criação de programas estaduais de incentivo à instalação de empresas do setor, combinando benefícios fiscais para companhias estrangeiras do setor que optem por se estabelecer no território estadual — transferindo tecnologia, gerando empregos e recolhendo tributos locais — com linhas de crédito concessionadas por agências estaduais de fomento para viabilizar projetos de investimento e expansão.
No setor produtivo, é viável vincular benefícios fiscais estaduais à adoção de soluções de rastreabilidade em tecnologia blockchain, especialmente nos segmentos de agronegócio, indústria automotiva e cadeia de suprimentos. Grandes montadoras de veículos, fabricantes de autopeças e agroindústrias têm buscado rastreabilidade digital como diferencial competitivo e exigência ESG, o que pode ser aproveitado para atrair esses players a projetos estaduais de inovação regulatória e industrial.
Também é possível a criação de pólos tecnológicos ou zonas especiais de inovação, com infraestrutura privilegiada e regime jurídico simplificado para experimentação de modelos de negócios que utilizem ativos virtuais e tecnologia blockchain, bem como parcerias com universidades para o fornecimento de capacitação técnica na área.
No setor imobiliário, os Estados podem adotar políticas voltadas à integração de ativos virtuais, inclusive por meio de incentivos à incorporação e comercialização de empreendimentos que aceitem criptomoedas como forma de pagamento. Além de posicionar o Estado como ambiente favorável à inovação, essas iniciativas têm o potencial de atrair investidores, fomentar parcerias com empresas especializadas em tokenização de ativos reais e impulsionar a formalização de modelos alternativos de financiamento e aquisição imobiliária.
Também é juridicamente admissível que Estados criem incentivos à atividade de mineração de Bitcoin, desde que tais incentivos se limitem à esfera de sua competência — como a concessão de benefícios fiscais, infraestrutura industrial, linhas de crédito ou programas de fomento. Por outro lado, políticas que impliquem regulação do setor energético, subsídios tarifários ou intervenções na matriz de energia elétrica extrapolam a competência estadual, por se inserirem no campo normativo reservado à União (CF, art. 22, IV).
No plano institucional, é igualmente possível o estabelecimento de selos estaduais de conformidade, certificando empresas que adotem boas práticas de compliance, segurança cibernética e proteção de dados — o que eleva a credibilidade do ecossistema local e atrai capital institucional. Iniciativas como eventos de premiação, hackathons, parcerias público-privadas para contratação de soluções em tecnologia blockchain e o uso de tokens utilitários em políticas públicas completam um rol de medidas que, além de juridicamente viáveis, são eleitoralmente promissoras.
Na área de turismo, os Estados podem explorar sua vocação local por meio de políticas públicas inovadoras. A criação de “destinos cripto-friendly” — com aceitação ampliada de ativos virtuais em serviços locais, integração com plataformas de reservas e programas de fidelidade baseados em tokens — agrega valor à imagem institucional e atrai um público de alta renda. Experiências desse tipo já vêm sendo adotadas em hubs de inovação global como Dubai, Singapura e Suíça, que utilizam tais estratégias não apenas para atrair turistas, mas para consolidar-se como centros de excelência em tecnologia e liberdade financeira.
Consideradas essas múltiplas frentes de atuação, impõe-se a reflexão sobre os contornos constitucionais que viabilizam, e até impulsionam, o protagonismo normativo dos Estados nesse domínio emergente
A ausência de diretriz constitucional específica sobre os ativos virtuais, somada à complexidade técnica e à fluidez conceitual que caracterizam essas tecnologias, inviabiliza qualquer leitura que pretenda reservá-lo, de forma exclusiva, à competência legislativa da União. Ao contrário, o espaço normativo em aberto, delineado pela omissão do art. 22 da Constituição Federal, legitima — e em certa medida exige — a atuação normativa dos Estados no exercício da competência plena prevista no §3º do art. 24, enquanto não houver norma geral federal incidente sobre aspectos determinados do tema.
Tal possibilidade é especialmente relevante diante da crescente importância econômica, tecnológica e institucional dos ativos virtuais. Esses instrumentos já se integram a cadeias produtivas, modelos de negócios e estratégias de inovação adotadas por empresas e governos em todo o mundo, sendo vetores de transformação na forma como se concebe valor, propriedade e infraestrutura financeira. Trata-se, portanto, de uma agenda transversal, com implicações fiscais, regulatórias e sociais, cuja condução normativa não pode ser monopolizada por uma única esfera de poder, sob pena de ineficiência institucional e perda de oportunidades estratégicas para o desenvolvimento regional.