A geopolítica das stablecoins e das CBDCs

A soberania de amanhã pertencerá a quem dominar a arquitetura técnica das redes de valor e converter linhas de código em instrumento efetivo de poder monetário.

Desde a publicação do whitepaper do Bitcoin, em 2008, os ativos virtuais deixaram de ser mera experimentação criptográfica conduzida por entusiastas e passaram a englobar finalidades muito mais amplas.

Hoje, atuam como instrumentos financeiros e especulativos de alta liquidez, alicerçam protocolos de finanças descentralizadas que dispensam intermediários tradicionais, movimentam corretoras globais com volumes bilionários, sustentam uma miríade de novos ativos de utilidades variadas, impulsionam o vasto universo da tokenização de bens tangíveis e intangíveis, dentre outros.

Essa difundida adoção, somada à sofisticação tecnológica e ao impacto sistêmico já exercido sobre a infraestrutura de diversos mercados, atraiu o olhar dos Estados-nação: parlamentos discutem e aprovam marcos regulatórios, autoridades apresentam atos normativos de temáticas variadas, bancos centrais avançam em projetos de emissão moedas virtuais próprias e alguns países discutem a inclusão do Bitcoin em suas reservas soberanas.

Nesse cenário de ampliação de atividade estatal, a dimensão geopolítica torna-se inescapável.

Para tanto, no âmbito de disputa por influência sobre a arquitetura financeira internacional, países estão utilizando ativos virtuais como instrumentos de soft power, ora para reforçar a hegemonia de suas moedas, ora para contornar sanções econômicas ou criar novos corredores de liquidez.

É justamente nesse contexto que as stablecoins, ao aliarem paridade fiduciária e circulação global em blockchains públicas, despontam como peça central das estratégias monetárias contemporâneas e já são objeto de uma nova fase de competição econômica mundial.

Os Estados Unidos consolidam a hegemonia do dólar norte-americano na era digital ao apoiar stablecoins ancoradas na própria moeda nacional — sobretudo USDT e USDC, cuja capitalização já supera expressivos US$ 200 bilhões — por meio de um arcabouço que legitima a emissão privada sob rígida supervisão pública: o STABLE Act, aprovado no Comitê de Serviços Financeiros da Câmara, exige que emissores obtenham uma licença federal para atuar, mantenham lastro integral em títulos do Tesouro norte-americano e publiquem reservas diariamente; o GENIUS Act, em tramitação no Senado, reafirma que esses ativos virtuais não constituem valores mobiliários, subordinando-os a uma supervisão prudencial do Federal Reserve; e a Ordem Executiva n.º 14178, por sua vez, proíbe a criação de uma CBDC de varejo, direcionando o esforço regulatório nacional para disciplinar justamente o ecossistema de stablecoins, tendo como objetivo final a preservação do dólar norte-americano como denominador universal das transações virtuais.

Na Europa, o objetivo geopolítico é blindar a soberania monetária do bloco diante da proliferação de dólares norte-americanos tokenizados e, simultaneamente, erigir um ecossistema coerente com o MiCA, que exige autorização prévia da Autoridade Bancária Europeia, segregação integral das reservas e limites de circulação para stablecoins não lastreadas em euro, travando a expansão de USDT e USDC no mercado europeu.

Além disso, a UE incentiva emissores locais a lançar versões estáveis de sua moeda, sendo que o Banco Central Europeu está conduzindo a fase de preparação de uma CBDC, com lançamento estimado para 2026 – medidas que buscam efetivamente assegurar que o euro permaneça como a referência monetária em ativos virtuais no bloco.

A China encara o ecossistema de ativos virtuais como extensão natural da disputa por primazia monetária e, em vez de incentivar a proliferação de stablecoins privadas, busca fortalecer a internacionalização do renminbi por meio do e-CNY.

Ao mesmo tempo em que mantém proibida a emissão de stablecoins lastreadas em yuan por agentes privados, o Banco Popular da China expande pilotos transfronteiriços — como a integração do e-CNY com o sistema de pagamentos rápidos de Hong Kong e o projeto multilateral mBridge em parceria com o Banco de Compensações Internacionais, os Emirados Árabes, a Tailândia e Hong Kong — permitindo liquidações quase instantâneas e baratas em comércio bilateral, sobretudo nas rotas da Iniciativa Cinturão e Rota. Com isso, Pequim pretende reduzir a dependência do sistema SWIFT, blindar‐se a sanções financeiras baseadas no dólar norte-americano e oferecer aos parceiros comerciais uma alternativa digital plenamente sob controle estatal, reforçando o renminbi como moeda de liquidação e reserva regional.

Na Rússia, a estratégia serve a dois propósitos geopolíticos simultâneos: contornar sanções ocidentais e cimentar uma esfera financeira eurasiática centrada no rublo.

Para o fluxo comercial imediato, Moscou liquida exportações de petróleo e outras commodities em USDT sobretudo com contrapartes chinesas e indianas, operando-as por mesas OTC em Hong Kong, Dubai e pelo novo sistema de compensação “China Track”, tudo fora do alcance do SWIFT. Paralelamente, o Banco da Rússia pilota o rublo digital em diversas regiões e negocia pontes de liquidação com Belarus, Cazaquistão e demais membros da União Econômica Eurasiática.

Os recentes bloqueios de USDT vinculadas a intermediários russos pela Tether reforçou a proposta do Ministério das Finanças de lançar uma stablecoin própria, possivelmente lastreada em ouro ou rublo, para reduzir a vulnerabilidade a emissores sediados nos EUA. Assim, Moscou combina liquidez privada em stablecoins estrangeiras com infraestrutura estatal (CBDC e futura stablecoin nacional) para proteger o comércio externo e, gradualmente, reposicionar o rublo como moeda de compensação na Eurásia.

No Brasil, a agenda de ativos virtuais é essencialmente regulatória: o Banco Central conduz o piloto do DREX para modernizar liquidações bancárias e testar usos em comércio exterior automatizado, mas sem ambição de projeção monetária internacional.

Ao mesmo tempo, o Congresso e o Banco Central discutem normas específicas sobre stablecoins e sobre tokenização que deverão restringir a circulação irrestrita de tokens lastreados em dólar, reforçando controles de prevenção à lavagem de dinheiro. Embora haja projetos parlamentares sugerindo a inclusão de Bitcoin nas reservas internacionais, nenhum evoluiu além das comissões.

Dessa forma, conclui-se que o Brasil busca eficiência doméstica e robustez regulatória, sem utilizar ativos virtuais como um instrumento geopolítico.

Além dos eixos centrais já analisados, emergem frentes geopolíticas mais sutis mas igualmente relevantes: potências energéticas do Golfo experimentam tokens lastreados em barris de petróleo para negociar contratos fora do petrodólar, países do BRICS estudam um corredor de liquidação em stablecoins indexadas a uma cesta de commodities para reduzir a dependência cambial, economias africanas — da Nigéria à Tanzânia — se valem de CBDCs de varejo como antídoto à dolarização informal e instrumento de inclusão financeira, ilhas do Caribe convertem-se em laboratórios de identidades digitais soberanas associadas a moedas estáveis para captar remessas da diáspora, enquanto jurisdições sob sanções — do Irã à Venezuela — hibridizam mineração de Bitcoin com exportações de energia para obter divisas duras à margem do sistema SWIFT.

Democracias liberais como o Reino Unido, a Suíça, o Canadá e a Austrália discutem a adoção de stablecoins algorítmicas respaldadas por créditos de carbono, buscam projetar soft power ambiental e abrir um mercado voluntário de offsets tokenizados, sinalizando que a disputa monetária contemporânea transcende a moeda em si e alcança domínio sobre infraestrutura de liquidação, governança de dados e narrativa regulatória global.

A virtualização informático-monetária rearranja o tabuleiro do poder global. Nesse contexto, é perceptível que a arquitetura de stablecoins, CBDCs e protocolos de liquidação descentralizada ocupa hoje o lugar estratégico que, em outras eras, pertencia não apenas ao ouro, mas às rotas marítimas ou oleodutos: quem controla os ativos ou os canais pelos quais o valor circula exerce influência sobre as decisões políticas, a cação de ativos e no ritmo econômico.

Economias capazes de articular política financeira, engenharia criptográfica e governança regulatória conquistarão vantagem competitiva e atrairão poupança internacional; quem permanecer inerte nos sistemas legados será relegado à periferia das cadeias de liquidação, perdendo capacidade de projetar influência.

A soberania de amanhã pertencerá a quem dominar a arquitetura técnica das redes de valor e converter linhas de código em instrumento efetivo de poder monetário.

$100 de bônus de boas vindas. Crie sua conta na maior corretora de criptomoedas do mundo e ganhe até 100 USDT em cashback. Acesse Binance.com

Entre no nosso grupo exclusivo do WhatsApp | Siga também no Facebook, Twitter, Instagram, YouTube e Google News.

Leia mais sobre:
Pedro Torres
Pedro Torreshttps://sydowtorres.adv.br/
Pedro Torres é advogado especializado em Blockchain e Criptoativos. Mestre em Blockchain e Moedas Digitais pela Universidade de Nicósia (Chipre), ele atua como Investigador Forense de Criptoativos, certificado pelo McAfee Institute (EUA) e pela Chainalysis (EUA). Sua expertise abrange o Direito dos Criptoativos e Blockchain, com especialização pela Escola da Magistratura Federal do Paraná (ESMAFE) e pela Escola da Magistratura Estadual do Paraná (EMAP). Além disso, é Conselheiro do Conselho de Ativos Digitais e Blockchain da Associação Comercial do Paraná e membro de organizações de destaque como a Crypto Valley Association (Suíça) e o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Pedro também integra a Comissão Especial de Inovação e Tecnologia da OAB/SP, refletindo seu papel ativo na inovação jurídica.
Comprar agora

Últimas notícias