Imagine que você tem R$ 10 mil de crédito numa exchange e percebe, no livro de ordens, uma ordem de venda de bitcoins a um valor muito baixo, por exemplo, a R$ 1.000 cada. Você compraria 10 BTCs no ato, certo? Afinal, poderia logo vender por R$ 360 mil as 10 unidades fácil, fácil.
Agora imagine que, quando você pede o saque dos seus BTCs, a exchange avisa que a venda foi um erro na plataforma e cancela sua compra, devolvendo seu saldo anterior, em reais, para sua conta.
Isso foi exatamente o que aconteceu com o trader Carlos Ney da Silva Sousa, professor de inglês e morador de Santarém, Pará, em novembro do ano passado, com a diferença somente de que não se tratava de bitcoins, mas outra moeda.
De grande negócio a grande prejuízo
No dia 6 de novembro de 2018, Carlos percebeu uma ordem de venda de Litecoin a um valor bem baixo na exchange BitcointoYou. Ele aproveitou a oportunidade e comprou 1800 litecoins, pagando 0,15309405 BTC pelo pacote.
Para se ter uma ideia do quão baixo foi esse preço, basta sabermos que, naquela data, o Litecoin estava valendo algo em torno de US$ 54,40. O valor pago por Carlos, convertido em dólar e usando o valor do BTC daquela data, daria algo como USD 0,55 por moeda, ou seja, cerca de 1% do valor de mercado da LTC. Um negócio da China!
Porém, no mesmo dia, Carlos tentou fazer o saque dos seus 1800 LTCs, no caso, para a exchange Huobi, mas o saque foi bloqueado. No dia seguinte, conseguiu completar 3 saques menores, totalizando R$ 12.680, mas nada dos seus 1800 LTCs aparecerem na sua conta da outra exchange.
Este print mostra o saldo da carteira de Carlos, já com sua solicitação de saque:
Três dias depois, em 9 de novembro, ele recebeu da BitcointoYou um aviso de que sua compra inicial de LTCs havia sido cancelada. A mensagem era a seguinte:
Qual a surpresa de Carlos ao olhar sua conta e ver que seus 1800 LTCs haviam realmente sumido do seu saldo. Em seu lugar, havia um resquício em BTCs e um pequeno saldo em LTCs, resultado de moedas que Carlos havia comprado a valores normais, antes da compra dos 1800 LTCs.
O trader conta que iniciou uma verdadeira batalha tentando reaver seus litecoins comprados, nessa altura, desaparecidos. “Eu mandei inúmeros e-mails cobrando minhas moedas litecoins”, lembra, mas diz só ter recebido da exchange respostas computadorizadas, que sequer se dispunham a explicar sua questão.
Dias depois, Carlos recebeu um e-mail dizendo que a plataforma entraria em manutenção, o que aconteceu efetivamente. Qual a sua surpresa quando, quatro dias depois, a plataforma voltou ao ar com todo o histórico de ordens apagado, ou seja, não havia mais nenhuma prova na corretora de que as negociações anteriores tinham sido realizadas. Nem de que ele havia comprado seus 1800 LTCs.
Carlos conta ainda que, mesmo tendo a plataforma voltado ao ar, ele continuava impedido de fazer movimentações, inclusive saques. Isso fez com que ele ficasse com suas moedas presas de 8 a 26 de novembro, período em que a Litecoin perdeu 50% do seu valor e o BTC perdeu 42%.
Cobrança indevida e erros primários
“Fui para cima deles nas redes sociais, no Bitcointalk, Reddit, Facebook, Instagram, Twitter, fóruns, vídeos deles no youtube, daí ficaram com raiva e me contra-atacaram com uma cobrança totalmente descabida”, conta.
A cobrança aconteceu já em junho de 2019, e sua mensagem é esta logo abaixo:
O trader não reconhece nenhum dos saques acusados pela exchange. Na verdade, como explicado acima, no dia seguinte à sua grande compra, ele conseguiu completar 3 saques que, juntos, totalizaram R$ 12.680. “Se é sobre esses saques que eles estão cobrando, então é totalmente indevido, pois eu tinha recursos mais do que suficientes para fazer o saque naquela data”, analisa o trader.
Restava ainda a dúvida sobre esses “173,9657 litecoins” que a empresa também lhe cobrava. O que Carlos descobriu o fez rir e chorar ao mesmo tempo, pelo que considerou um “amadorismo gigantesco” da empresa.
Ao acessar na blockchain os hashes das transações que realizaram esses saques de R$ 12.680, um deles correspondia à movimentação de 50 litecoins de um endereço da BitcointoYou para o do trader. Eis que ele acessou o endereço de origem, disponível neste link, e descobriu que 173.9657467 foi o número total exato de LTCs da carteira de origem.
Este é o print do endereço de origem:
Já este é o print do endereço do trader:
Ou seja, tudo indica que a exchange fez uma péssima auditoria e confundiu o valor total do endereço de origem com o valor de 50 LTCs, que saiu efetivamente para a carteira de Carlos. E mesmo esses 50 LTCs, que efetivamente saíram, não seriam indevidos, já que o trader afirma que possuía saldo na conta.
Tentativas de acordo
O trader conta ainda que propôs diversos acordos para que a BitcointoYou pagasse, ao menos, parte do que acredita que a exchange lhe deve. Ele explica que não quis ainda entrar na justiça porque os custos são altos e porque ele sabe que a justiça demora muito a resolver essas questões. Por isso, segue na tentativa de um acordo.
A última proposta que enviou à BitcointoYou foi no dia 31 de julho. Na ocasião, propôs que a exchange lhe pagasse 8 BTCs ou 900 LTCs, valor que chegam próximos de R$ 300 mil, para que ele desse o caso por encerrado. Não obteve ainda resposta da empresa.
Mais traders com prejuízos
Infelizmente, Carlos não foi o único trader a ter ordens canceladas pela BitcointoYou. Ele conta que, na mesma ocasião, vários conhecidos seus compraram os LTCs a preços baixos e sofreram problemas parecidos.
Neste print, podemos ver um volume de mais de 8700 LTCs negociados na data em que os preços estavam baixos na exchange, ou seja, 7 de novembro de 2018:
Um amigo de Carlos por exemplo, chamado Danilo Cardoso Salgado e morador de Ribeirão das Neves, em Minas Gerais, teve uma compra de R$ 10.730, feita em 7 de novembro passado, também cancelada. Ele chegou a fazer boletim de ocorrência e apresentou denúncia ao Ministério Público contra a exchange, acusando-a de reter os valores e levantando a suspeita de a empresa estar lucrando com esses bloqueios.
No site Reclame Aqui, é possível também encontrar dezenas de reclamações de traders realizadas no mesmo período de novembro de 2018. Em quase todas, a história é a mesma: compra de litecoins a um preço baixíssimo, seguida de impedimento de saques.
Há casos em que a exchange afirmou que os saques não estavam ocorrendo porque precisava “carregar a hotwallet”. Em outros, afirma que a plataforma teve problemas técnicos e que a resposta foi enviada ao e-mail do cliente. Uma simples busca no site permite ler as reclamações, que podem ser encontradas neste link.
Ordens de compra e venda podem ser canceladas?
A história de Carlos e dos outros traders levanta uma discussão importante. Ordens de compra e venda em exchanges podem ser canceladas? Se sim, em quais condições?
O próprio documento de “Termos de uso” da BitcointoYou, que foi tirado do ar desde que começaram a ocorrer os problemas, dizia o seguinte:
O Usuário declara-se ciente de que cada Ordem de Venda por ele publicada no Site representa uma oferta firme de venda dos Bitcoins referidos na Ordem de Venda, pelo preço nela indicado pelo próprio Usuário. Assim, o Usuário declara-se ciente de que, após a aceitação de sua Ordem de Venda por outro Usuário, a venda dos Bitcoins objeto da Ordem de Venda será automaticamente realizada pelo Site e não poderá ser desfeita ou modificada. Uma vez aceita a Ordem de Venda por qualquer Usuário, os Bitcoins objeto da Ordem de Venda serão automaticamente transferidos para a conta do Usuário aceitante. O Usuário poderá cancelar qualquer Ordem de Venda apenas antes de sua aceitação por outro Usuário.
Vale pesar o fato de que o documento falava somente em Bitcoins, não em outras moedas. Porém, por analogia, qualquer cliente provavelmente acreditaria que a mesma regra vale para todas as moedas negociadas na plataforma.
Conversamos com o advogado Raphael Pereira de Souza, do escritório R Souza Advocacia, que tem forte trabalho em questões relacionadas a blockchain e criptomoedas. Na opinião dele, não caberia à Exchange cancelar as ordens já realizadas. Ele explica bem seu posicionamento no depoimento a seguir:
“A exchange de criptomoedas é uma intermediadora de negociações que atua com capital de terceiros. Por isso, são os próprios traders responsáveis pela negociação na plataforma e não a corretora. Tanto é verdade que as corretoras deixam bem claro nos Termos de Uso que não interferem nas ordens.
Além disso, como o ramo de criptomoedas não é regulamentado, assim, os Termos de Uso da plataforma são um contrato entre corretora e usuários e têm força de lei entre as partes.
Portanto, se a exchange define no próprio termo de uso que é mera intermediadora e que não interfere nas negociações, não cabe a esta cancelar ou anular negociação efetivada.
Vale lembrar que a tese jurídica de “anúncio de preço errado” ou “erro de publicidade” comumente utilizada por e-commerce para se livrar da obrigatoriedade de venda de produto anunciado por preço muito abaixo do praticado (exemplo de loja online que se engana e anuncia computador por R$ 10,00) em nosso entendimento, não deve ser aplicada ao caso, pois exchange não é e-commerce e não vende, simplesmente intermedia negociações.
Em última instância, apenas o trader que equivocadamente lançou a ordem de venda com preço muito abaixo do mercado poderia, em tese, requerer o cancelamento, pois o direito brasileiro veda o enriquecimento sem causa e estabelece o equilíbrio entre as partes, evitando a vantagem exagerada em favor de um em prejuízo de outro.
O advogado, entretanto, ressalta a fragilidade das provas apresentadas pelo trader:
“Ponto sensível em situações onde a exchange cancela ordem efetivada é provar o ocorrido. Isto porque muitas vezes os usuários se limitam a acumulam diversos prints e, em que pese sua validade jurídica, são um tipo de prova frágil.
Portanto, além dos prints e e-mails automáticos que são recebidos pela plataforma quando a ordem é lançada e efetivada, é importante refletir sobre outras provas mais robustas.
É possível utilizar a ata notarial ou então a autenticação via blockchain, cuja efetividade já foi atestada pelo Tribunal de São Paulo, para comprovar a transação.
É razoável que operador de criptomoedas invista 15 reais para ter um prova registrada na blockchain, principalmente quando os valores de criptomoedas em causa são expressivos.”
Perguntamos ainda se a estratégia de Carlos, de buscar um acordo com a exchange, pode funcionar ou se, em casos assim, melhor seria entrar na justiça. A resposta do advogado foi a seguinte:
“É possível e recomendável buscar o acordo com a corretora. No entanto, se infrutífera a composição, pode o cliente ingressar em juízo para reaver o que entende devido. Antes de bater às portas do judiciário é razoável empenhar todos os esforços para resolver o conflito amigavelmente. Tal atitude demonstra boa-fé, além de ser bem vista pelos juízes.”
Outro lado
A reportagem do Livecoins procurou seguidamente a exchange BitcointoYou para ter seu lado sobre as denúncias. O primeiro contato foi em 16 de julho, via chat da plataforma e depois pelo e-mail indicado pelo atendente. Nos dias seguintes cobramos retornos, mas, até a finalização desta reportagem, não obtivemos respostas.