Casa branca com bandeira de Bitcoin (imagem gerada com IA, MidJourney Livecoins)
Na edição mais recente do The Economist, de 17 de maio de 2025, o editorial intitulado “Crypto has become the ultimate swamp asset” sustenta que os ativos virtuais, que nasceram como uma “tecnologia de libertação” com propósito utópico de devolver o poder aos pequenos investidores, acabou por se converter no “ativo-lama” definitivo – um instrumento profundamente imbricado em interesses políticos e financeiros que beiram o autonegócio. Nos últimos seis meses, o setor integrou-se ao poder em Washington: ex-ministrantes e reguladores ocuparam cargos-chave no governo, grandes players do mercado fizeram donativos milionários a campanhas, e até meme coins como o $TRUMP serviram de via de acesso privilegiado ao presidente norte-americano.
Fora dos EUA, porém, jurisdições como União Europeia, Japão e Emirados Árabes Unidos avançam com clareza regulatória sem repetir esses conflitos de interesse. O artigo destaca também que os usos mais promissores da tecnologia se manifestam no mercado de ativos tokenizados: em 18 meses, o volume de bens do mundo real — de crédito privado a títulos do Tesouro — transformados em tokens triplicou. No front de pagamentos, gigantes como Mastercard e Stripe já permitem liquidações instantâneas em stablecoins, com potencial de reduzir custos, embora o setor arrisque “queimar” essa oportunidade ao recorrer a lobby agressivo e disputas judiciais contrariando decisões regulatórias.
O editorial prossegue avaliando que a ambição original de descentralização acabou sendo corroída pela própria dinâmica de poder que procurava combater. Plataformas de negociação descentralizadas, antes celebradas por eliminar intermediários, tornaram-se palco de grandes participantes que detêm liquidez suficiente para ditar preços e taxas, minando a verdadeira autonomia do usuário individual. Ao mesmo tempo, a fragmentação das cadeias de validação e a proliferação de forks criaram um ecossistema em que rivalidades entre comunidades técnicas frequentemente culminam em competições de marketing, em vez de avanços efetivos de segurança e escalabilidade.
O texto também chama a atenção para o paradoxo das stablecoins como “ponte para o futuro” dos pagamentos instantâneos e de baixo custo. Embora gigantes do setor financeiro convencional já integrem esses instrumentos em suas operações de liquidação, a falta de um arcabouço regulatório sólido expõe depositantes e credores a riscos sistêmicos comparáveis aos de um banco-comércio de nicho, sem as salvaguardas de capital e liquidez que um banco tradicional é obrigado a manter
Ademais, o editorial sugere que o verdadeiro potencial transformador da tecnologia blockchain reside em aplicações menos vistosas, porém mais robustas: rastreabilidade de cadeias de suprimentos, administração de direitos autorais tokenizados e registro de propriedade intelectual. Nesses nichos, a tecnologia provou reduzir custos de auditoria e aumentar a transparência, sem atrair a turbulência especulativa típica dos mercados de criptomoedas. A consolidação desses casos de uso enterprise-grade dependerá, no entanto, de uma harmonização regulatória internacional que estabeleça padrões mínimos de segurança, interoperabilidade e governança.
Há de convir que o conceito de descentralização criado pelo Bitcoin já não é o mesmo, embora a tecnologia em si permaneça intocada: o que se delineava como um sistema verdadeiramente autônomo e sem intermediários evoluiu para um ecossistema no qual grandes detentores de liquidez, fundos institucionais e influências políticas articulam taxas de validação, parâmetros de governança e até mesmo roadmap de desenvolvimento de protocolos. Esse descolamento entre o ethos original e a configuração atual não anula, porém, as qualidades criptográficas inatas do blockchain — imutabilidade dos registros, auditabilidade criptográfica e liquidação quase instantânea de transações — que podem, sob um marco regulatório sofisticado, reconduzir o setor à sua promessa de eficiência sistêmica e inclusão financeira.
Em face desse panorama regulatório internacional, marcado por acertos e equívocos, cabe ao Brasil extrair lições que moldem um marco próprio, alinhado às suas especificidades econômicas e institucionais.Nesse sentido, a construção de arcabouço regulatório nacional eficaz deve partir de um diagnóstico preciso dos acertos e equívocos internacionais, transformando-os em catalisadores de inovação local.
O MiCA europeu demonstra que é possível combinar requisitos rigorosos de capital mínimo e regras detalhadas de governança on-chain sem tolher o dinamismo do mercado: seus padrões prudenciais — que incluem testes de resiliência periódicos e relatórios de auditoria independentes — servem de bússola para mitigar riscos sistêmicos sem barrar o desenvolvimento de novas aplicações.
Já o caso norte-americano alerta para os perigos de uma regulação capturada por influências políticas: a derrocada do projeto bipartidário de regulação de stablecoins evidenciou como o vácuo normativo acelera a formação de “ativos-pântano” politicamente endinheirados, corroendo a confiança do investidor.
A experiência dos Emirados Árabes Unidos mostra que sandboxes bem estruturados, articulados entre autoridade monetária e agência de valores mobiliários, conseguem oferecer um ambiente de testes controlados — de tokenização imobiliária a pagamentos transfronteiriços em stablecoin — sem comprometer a integridade do sistema financeiro.
Na Suíça, a liderança em blockchain é sustentada por um arcabouço jurídico claro e colaborativo: a FINMA fornece orientações precisas sobre classificação de tokens, enquanto a Lei DLT cria um ambiente legalmente seguro para experimentação. Organizações como a Crypto Valley Association e a Swiss Blockchain Federation promovem iniciativas de governança on-chain e definem padrões de compliance que equilibram supervisão e inovação.
Em consonância com o diagnóstico feito pelo editorial do The Economist, que qualificou os criptoativos como “o ativo-pântano definitivo”, fruto de captura política e lobby agressivo — concluímos que o Brasil encontra-se em posição única para extrair o melhor dos modelos internacionais e moldar uma regulação de ativos virtuais que equilibre segurança sistêmica, dinamismo de mercado e inovação.
Inspirar-se no MiCA, com seus requisitos de capital mínimo, governança on-chain e auditorias independentes, reduzindo riscos sem engessar a inovação; evitar o vácuo normativo e a captura política dos EUA, apostando em processos legislativos claros e tecnicamente sólidos; implementar sandboxes como os dos Emirados Árabes Unidos para testar tokenização e pagamentos com segurança; e adotar um marco jurídico à suíça, com diretrizes objetivas da FINMA e lei DLT robusta, a fim de criar no Brasil um ambiente regulatório próprio que alavanque eficiência, transparência e inclusão financeira.
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