Fabiano Contarato (PT-ES) // Waldemir Barreto/Agência Senado
No dia 08 de julho de 2025, o Senador da República Fabiano Contarato (PT-ES) apresentou o PL 3.279/25, cujo objeto é acrescentar o art. 244-A ao Código de Processo Penal[1] para autorizar o Delegado de Polícia a determinar, de ofício e de forma cautelar, o bloqueio imediato de valores, bens e ativos financeiros em casos de estelionato mediante fraude eletrônica (art. 171, § 2º-A do Código Penal) e fraude em aplicações financeiras (art. 171-A do Código Penal).
Segundo o Parlamentar, a proposta busca “suprir uma lacuna procedimental que compromete a efetividade da persecução penal nos crimes financeiros digitais”, aduzindo “que o prévio requerimento judicial para a adoção de medidas constritivas é insuficiente para impedir a pulverização dos ativos em contas de terceiros, conversão em criptoativos ou transferência para o exterior”.
Dessa forma, o Senador petista propõe que, diante da constatação de indícios razoáveis de materialidade, autoria e movimentação fraudulenta de valores, o Delegado de Polícia proceda ao bloqueio cautelar imediato, com fundamentação escrita e sujeição a controle jurisdicional posterior.
Sem embargo do fato que o PL mereça severas objeções sob a ótica das garantias fundamentais e do devido processo legal — especialmente por tensionar princípios estruturantes do processo penal acusatório, como o juiz natural, a imparcialidade da jurisdição e a reserva de jurisdição para medidas constritivas —, o presente artigo detém-se em outro ponto igualmente preocupante e que reiteradamente tem sido objeto de nossas críticas: a forma como os ativos virtuais vêm sendo retratados como instrumentos centrais da criminalidade, em uma narrativa reducionista que desconsidera por completo os aspectos técnicos que caracterizam inerentemente tais tecnologias.
A proposta legislativa, ao autorizar o bloqueio extrajudicial apenas em hipóteses que envolvam a conversão de valores em ativos virtuais ou sua transferência para o exterior, incorre em uma seletividade normativa incompatível não apenas com a lógica sistêmica do processo penal, mas também da própria tecnologia.
Essa abordagem revela, mais uma vez, a persistência de uma visão tecnofóbica e imprecisa no tratamento legislativo dos ativos virtuais, que são aqui, novamente, apresentados de forma estigmatizada, como meros facilitadores da ocultação patrimonial ou da evasão de divisas.
Não se olvida que os ativos virtuais, assim como outros instrumentos financeiros, podem ser utilizados para fins criminosos, mas isso não autoriza sua generalização como meros vetores da ilicitude.
Tal como o dinheiro em espécie, os contratos bancários ou os sistemas tradicionais de transferência eletrônica, igualmente podem ser empregados em fraudes e esquemas ilícitos, sem que, por isso, sejam objeto de demonização normativa ou associação automática à criminalidade.
A suposta “lacuna procedimental” apontada pelo Senador, na realidade, decorre de uma incompreensão estrutural sobre o funcionamento da tecnologia subjacente aos ativos virtuais.
No caso das blockchains públicas como a do Bitcoin, Ethereum e Tron — que representam a esmagadora maioria das transações realizadas com os ativos mais transacionados, BTC, ETH e USDT— os registros são transparentes, permanentes e rastreáveis em tempo real, com maior precisão do que os sistemas bancários convencionais.
Quanto às dificuldades operacionais de bloqueio, estas não decorrem de omissão normativa, mas sim da natureza das plataformas envolvidas: corretoras descentralizadas, por definição, não possuem custódia de ativos, inviabilizando bloqueios diretos; corretoras centralizadas brasileiras já estão sujeitas à regulação e colaboram mediante ofício; e, no caso das corretoras estrangeiras, aplica-se a via própria da cooperação jurídica internacional — assim como ocorre com instituições financeiras estrangeiras no sistema bancário tradicional.
No caso da autocustódia, a impossibilidade de bloqueio decorre de um fato técnico intransponível: os ativos permanecem sob controle exclusivo do usuário, acessíveis apenas mediante posse da chave privada.
Não há terceiro intermediário que possa ser compelido a bloqueá-los. Ademais, o detentor da chave privada não possui dever legal de revelá-la no bojo de uma investigação, sob pena de violação ao direito à não autoincriminação.
Portanto, o problema, na realidade, não reside na tecnologia em si, mas na incapacidade de parte significativa dos operadores do Direito de compreender os fundamentos basilares que estruturam o ecossistema dos ativos virtuais e como isso dialoga com as ciências jurídicas.
Em vez de investir na qualificação técnica do funcionalismo público e na formulação de diretrizes investigativas compatíveis com o funcionamento das diversas categorias de ativos virtuais — como criptomoedas, criptoativos e tokens — o Estado recorre a propostas legislativas que atribuem presunção de ilicitude a estruturas tecnológicas legítimas, ignorando seu potencial jurídico-econômico, suas aplicações lícitas e sua crescente institucionalização no cenário global.
Ademais, o periciamento on-chain, viabilizado por ferramentas forenses públicas e privadas, deve ser progressivamente reconhecido e consolidado como instrumento legítimo no exercício da investigação defensiva, prática expressamente regulamentada pelo Provimento n.º 188/2018 do Conselho Federal da OAB.
De acordo com o art. 1º do referido normativo, “compreende-se por investigação defensiva o complexo de atividades de natureza investigatória desenvolvido pelo advogado, com ou sem assistência de consultor técnico ou outros profissionais legalmente habilitados, em qualquer fase da persecução penal, procedimento ou grau de jurisdição, visando à obtenção de elementos de prova destinados à constituição de acervo probatório lícito, para a tutela de direitos de seu constituinte”.
Conferir maior efetividade à persecução penal nos delitos de natureza informática, notadamente os que envolvem ativos virtuais, é, sem dúvida, um objetivo legítimo — mas que não pode ser alcançado por meio de soluções legislativas simplificadoras, fundadas em estigmas tecnológicos e em desprezo às garantias constitucionais.
A construção de um ambiente normativo compatível com a realidade desses ativos exige, antes de tudo, comprometimento técnico, precisão conceitual e disposição para o diálogo institucional com os profissionais que atuam diretamente no setor.
[1] Art. 244-A. Nos crimes previstos nos arts. 171, § 2º-A, e 171-A do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), constatados indícios razoáveis de materialidade e autoria, bem como a movimentação de valores obtidos mediante fraude, o Delegado de Polícia poderá determinar, de ofício e de forma cautelar, o bloqueio imediato de ativos financeiros, bens e valores. § 1º A medida cautelar será fundamentada por escrito no boletim de ocorrência ou termo circunstanciado correspondente. § 2º O Delegado de Polícia deverá comunicar a medida ao Poder Judiciário no prazo máximo de 48 (quarenta e oito) horas, sob pena de levantamento automático da medida, salvo se comprovada impossibilidade justificada. § 3º Recebida a comunicação do Delegado de Polícia e ouvido o Ministério Público, o juiz decidirá sobre a homologação ou revogação da medida em até 5 (cinco) dias. § 4º O disposto neste artigo não afasta a aplicação das demais medidas cautelares previstas em lei.
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