O recente ataque hacker ao sistema vinculado ao PIX, que afetou diretamente a infraestrutura operacional do Banco Central do Brasil, rapidamente ganhou as manchetes ao revelar que os criminosos converteram parte expressiva dos valores desviados em ativos virtuais, especialmente BTC, USDT e ETH.
A partir desse dado, a imprensa tradicional voltou a sustentar, de forma apressada e reducionista, a equivocada ideia de que os ativos virtuais seriam instrumentos inerentes à prática de crimes.
Mais uma vez, essa tecnologia foi retratada como protagonista de atividades criminosas, numa narrativa simplista que ignora aspectos técnicos essenciais e desconsidera a diversidade e a complexidade das operações legítimas no mercado de ativos virtuais.
O episódio teve como vetor inicial a manipulação de credenciais obtidas mediante engenhosidade social, o que possibilitou movimentações indevidas em contas de reserva bancária — estruturas essenciais para a liquidação financeira entre instituições participantes do sistema PIX.
Após a efetivação dos desvios, os criminosos deram início à rápida conversão dos valores em ativos virtuais, utilizando OTCs e corretoras na tentativa de ocultar a origem ilícita dos recursos.
Apesar de o episódio ter origem em falhas humanas e operacionais — e não em qualquer vulnerabilidade estrutural da tecnologia blockchain —, a cobertura jornalística concentrou-se, mais uma vez, nos ativos virtuais, tratando-os não apenas como facilitadores, mas como o suposto fator que tornaria o caso especialmente difícil de resolver — uma narrativa apressada que desconsidera a rastreabilidade inerente à tecnologia e os mecanismos técnicos já amplamente disponíveis para a persecução penal nesse contexto.
É comum que, no senso comum ativos virtuais sejam apresentadas como ferramentas criadas para a criminalidade. A superficialidade com que os ativos virtuais são frequentemente tratados no debate público cria a falsa impressão de que essas tecnologias teriam sido concebidas para facilitar práticas criminosas.
Essa percepção persiste porque boa parte das pessoas simplesmente reproduz conceitos errados que ouve sem qualquer verificação, alimentando um ciclo de desinformação em que ideias falsas vão sendo repetidas, reforçadas e aceitas como verdades, ainda que tecnicamente infundadas.
Tal conclusão, contudo, não resiste a uma análise tecnicamente rigorosa. Na realidade, as estruturas operacionais e os fundamentos técnicos dos ativos virtuais demonstram exatamente o oposto.
Bitcoin e Ether, por exemplo, são ativos que operam em redes públicas, cuja natureza é eminentemente transparente. Suas respectivas blockchains, por design, registram todas as transações de forma imutável, sequencial e permanentemente acessível. Trata-se de um sistema que, longe de viabilizar o anonimato absoluto, permite a rastreabilidade precisa de cada transferência, por meio de exploradores de blocos e de ferramentas de análise forense.
A pseudonímia dessas redes, frequentemente confundida com anonimato, é, na verdade, uma característica que preserva a identidade direta dos titulares, mas que jamais impede o rastreamento das transações.
Pelo contrário, a estrutura das blockchains públicas possibilita o mapeamento completo dos fluxos financeiros, a identificação de padrões transacionais, a conexão entre endereços e a reconstrução detalhada da trajetória dos ativos desde a origem até a sua destinação final, que, para fins de conversão e liquidez, dependem do sistema financeiro tradicional.
O USDT, por sua vez, apresenta ainda menos resistência à rastreabilidade. Trata-se de um ativo virtual emitido por uma entidade centralizada, com políticas próprias de compliance e monitoramento ativo das transações.
Além de operar sobre blockchains públicas, como Ethereum e Tron, o USDT, bem como outras stablecoins centralizadas, podem ser unilateralmente congeladas ou bloqueadas por seus emissores, prescindindo de ordem judicial ou critérios internos de risco.
A insistência em retratar os ativos virtuais como se fossem imunes à rastreabilidade ou como se constituíssem um obstáculo intransponível às autoridades é uma falácia alimentada por desconhecimento técnico ou por abordagens midiáticas que privilegiam a narrativa fácil e alarmista em detrimento da precisão.
Dados concretos expõem a distorção da narrativa criminalizante. Em 2023, um relatório da Chainalysis estimou que US$ 24,2 bilhões em criptomoedas foram enviados a endereços ilícitos – um montante relevante, mas que representa apenas 0,34% do volume total de transações on‐chain. No Brasil, entretanto, a realidade do crime organizado é severamente mais grave.
Uma pesquisa divulgada tanto pela Esfera Brasil quanto pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública estima que as facções criminosas faturam cerca de R$ 335 bilhões anuais apenas com o tráfico de cocaína – o que equivale a aproximadamente 4% do PIB – número que, evidentemente, aumentaria de forma expressiva se incluíssemos outros mercados ilícitos. Ainda assim, a desproporção é gritante e impossível de ignorar.
O episódio envolvendo o Banco Central é mais um exemplo da insistência social e midiática em tratar os ativos virtuais como facilitadores de crimes, ignorando que o problema estrutural estava na violação de protocolos humanos e operacionais, e não na tecnologia.
A criminalidade financeira, aliás, não nasceu com os ativos virtuais. O sistema bancário tradicional sempre foi — e ainda é — amplamente utilizado em esquemas de lavagem de dinheiro, evasão de divisas e ocultação patrimonial, sem que, por isso, o dinheiro fiduciário ou as transferências bancárias tenham sido demonizadas.
A narrativa de que os ativos virtuais seriam protagonistas do crime persiste, e isso prejudica o amadurecimento do mercado, afasta indivíduos e distorce o debate público, algo que se torna ainda mais grave em razão do processo de regulamentação em andamento no Brasil.
A desinformação e a ausência de educação financeira contribuem para reforçar o estereótipo de que toda iniciativa envolvendo ativos virtuais seria, por definição, fraudulenta ou criminosa, visão que é alimentada, em grande medida, em razão dos esquemas de falsos investimentos que usavam ou que simulavam o uso de criptomoedas e criptoativos.
Persistir na narrativa de que os ativos virtuais seriam ferramentas ideais para a prática de crimes é perpetuar um equívoco que desinforma o público e obscurece o real potencial transformador dessas tecnologias.
O episódio envolvendo o ataque ao sistema vinculado ao PIX deveria servir, na verdade, como ponto de partida para uma reflexão mais sofisticada: os ativos virtuais não foram concebidos para criminosos e não representam um obstáculo intransponível às investigações.
Ao contrário, a conversão dos valores subtraídos pode, justamente, facilitar a rastreabilidade, permitir a reconstrução das operações e viabilizar uma persecução penal eficaz — em muitos casos, com mais precisão e agilidade do que seria possível no sistema financeiro tradicional.
Esse episódio não deveria reforçar estereótipos ultrapassados, mas sim abrir espaço para um debate técnico, sério e responsável. É necessário fortalecer as práticas de segurança da informação, qualificar os servidores públicos, aprimorar os controles humanos e operacionais e, sobretudo, abandonar a visão reducionista que criminaliza, de forma injusta, um mercado inteiro e suas inovações legítimas.
Referências: https://www.chainalysis.com/blog/2025-crypto-crime-report- introduction/, https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/crime-organizado-se-infiltrou-grandes-setores-da- economia-mostra-estudo-da-esfera-brasil/