CriptoJud: avanço necessário, mas de alcance limitado diante das lacunas regulatórias

A constrição de ativos virtuais no Brasil enfrenta, até hoje, obstáculos significativos que decorrem não apenas da ausência de integração normativa e tecnológica entre o Poder Judiciário e as entidades que prestam serviços nesse mercado, mas também do descompasso entre a velocidade de evolução da tecnologia blockchain e das diversas modalidades e funcionalidades de ativos virtuais e a capacidade do Direito e de seus operadores de compreender como esses elementos dialogam com a realidade econômica e social, para então aplicá-los de forma eficaz na formulação e execução de medidas judiciais.

O aumento expressivo de fraudes envolvendo ou simulando o uso de ativos virtuais — práticas que ficaram popularmente conhecidas como “esquemas de pirâmide financeira[1]” — foi um dos fatores que motivaram a criação do CriptoJud, embora seja fato notório que, na maioria dos casos, os valores obtidos ilicitamente não permanecem depositados em custódia perante corretoras centralizadas, sendo que os responsáveis por essas operações recorram a mecanismos de autocustódia, negociações peer-to-peer (P2P), mesas de OTC ou corretoras estrangeiras descentralizadas.

De acordo com o presidente do CNJ, ministro Luís Roberto Barroso, o CriptoJud permitirá concentrar, em um único ambiente eletrônico, o envio automatizado de ofícios às empresas que operam com “criptomoedas e ativos digitais” — expressão que, por si só, causa estranheza, pois “criptomoeda” não é sinônimo de ativo virtual, mas apenas uma de suas modalidades.

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A própria Lei n.º 14.478/22 adota de forma inequívoca o termo “ativos virtuais” para delimitar juridicamente o conceito, abrangendo, além das criptomoedas, criptoativos e tokens. A confusão terminológica, partindo de uma de alto nível, exemplifica a mencionada imprecisão que ainda envolve o tema no Brasil.

Portanto, deixando de lado o detalhe terminológico, diferentemente do que está sendo amplamente veiculado, o CriptoJud não surge como uma medida de constrição patrimonial direta, mas sim como um mecanismo centralizado de envio de ofícios, cujo alcance prático está condicionado a fatores regulatórios e estruturais ainda não resolvidos.

Ou seja, o CriptoJud é, na essência, um sistema de comunicação processual e não de constrição patrimonial.

Ao contrário do Sisbajud — que, por estar formalmente vinculado ao Banco Central e às instituições financeiras, permite o bloqueio imediato de valores no Sistema Financeiro Nacional — o CriptoJud não poderia, pelo menos nas condições atuais, executar constrições automáticas.

Isso porque ainda inexiste regulamentação específica e vigente no Banco Central que defina parâmetros claros para autorização ou cadastro das prestadoras de serviços de ativos virtuais. Sem esse vínculo jurídico-normativo, não há integração técnica e legal capaz de transformar uma ordem judicial em bloqueio imediato, o que limita o sistema ao papel de remeter ofícios, ainda que de forma mais ágil e centralizada.

O ministro também mencionou a possibilidade de liquidação dos ativos em moeda nacional, mas sem apresentar elementos práticos que sustentem essa previsão.

A ausência de legislação que detalhe o procedimento levanta uma série de questões relevantes: quem seria responsável por manter a carteira na qual os ativos constritos seriam depositados?

Essa titularidade ficaria com o Banco Central, com os Tribunais de Justiça/Tribunais Regionais Federais/Tribunais Regionais do Trabalho ou com instituições financeiras específicas? Em que momento processual a liquidação ocorreria — após o trânsito em julgado ou ainda na execução provisória? E, considerando a volatilidade característica dos ativos virtuais, quem arcaria com eventuais perdas decorrentes de desvalorização entre a constrição e a liquidação?

Da mesma forma, quem se beneficiaria de uma eventual valorização? Não há qualquer norma que discipline a custódia judicial de ativos virtuais, a gestão de riscos de mercado, a responsabilidade por perdas e ganhos ou a destinação dos valores em caso de reversão da decisão que motivou a constrição.

É igualmente evidente — e, de certo modo, óbvio — que ativos virtuais mantidos em autocustódia, corretoras estrangeiras sem presença formal no país e operações em P2P ou OTC continuarão fora do alcance de qualquer mecanismo dessa natureza, um cenário que não tem solução consolidada nem no Brasil nem no exterior.

A autocustódia de ativos virtuais representa um dos pilares fundamentais da soberania financeira na era digital. Por meio dela, indivíduos mantêm controle absoluto sobre seus ativos, sem a necessidade de intermediários, utilizando carteiras não custodiais protegidas por chaves criptográficas privadas.

No entanto, essa mesma característica, que garante independência e segurança patrimonial, pode ser instrumentalizada por devedores e fraudadores para burlar o sistema, inviabilizando qualquer constrição por meio de ordens judiciais.

Trata-se de limitações estruturais do próprio modelo de custódia e da dinâmica de circulação de ativos virtuais perante essas estruturas, questões que exigem soluções regulatórias e tecnológicas específicas, capazes de compatibilizar a preservação de garantias processuais com a efetividade da tutela jurisdicional, mas que ainda não foram implementadas em nenhuma jurisdição de forma abrangente e eficaz.

Por sua vez, corretoras que não possuam sede ou CNPJ no território nacional não estão sujeitas à jurisdição brasileira para fins de cumprimento de ordens emitidas via CriptoJud, de modo que o sistema não possui qualquer acesso ou mecanismo para alcançar ativos virtuais custodiados nessas plataformas, que, na prática, permanecem imunes à constrição judicial.

O mesmo se aplica às corretoras descentralizadas, cuja própria arquitetura dispensa uma entidade central responsável pela custódia ou execução de ordens, impedindo que o CriptoJud possa operar qualquer medida coercitiva sobre elas.

À luz dessas considerações, embora o CriptoJud, implementado de forma tardia diante da crescente relevância dos ativos virtuais na realidade econômica, represente um avanço institucional ao centralizar e agilizar a expedição de ofícios, a forma como sua implementação vem sendo apresentada, tanto em declarações oficiais quanto na cobertura de parte da imprensa, tem difundido a ideia equivocada de que se trata de um “Sisbajud cripto”, capaz de realizar bloqueios automáticos e viabilizar a liquidação de bens.

Na realidade, sem um marco regulatório robusto que integre as prestadoras de serviços de ativos virtuais ao Banco Central e discipline todos os aspectos da custódia e liquidação, o sistema permanecerá como uma ferramenta de comunicação processual, útil para agilizar pedidos, mas incapaz de entregar, no curto prazo, a efetividade que o mercado e o próprio Poder Judiciário parecem esperar.

[1] Ao optarmos por utilizar a expressão “pirâmide financeira” adotamos uma abordagem que visa a destacar a natureza genérica e controversa deste termo.

Em que pese tal vagueza intrínseca ao termo ser incompatível com as regras de legalidade que regem o exercício da pretensão punitiva no direito penal, essa escolha estilística serve para enfatizar que a expressão “pirâmide financeira” pode englobar uma ampla variedade de esquemas fraudulentos e não se limita a uma definição técnica ou jurídica específica, a exemplo dos artigos 171 e 171-A do Código Penal, artigo 2º, IX, da Lei nº 1.521/1951 e artigo 16 da Lei nº 7.492/1986.

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Spencer Sydow
Spencer Sydowhttps://sydowtorres.adv.br/
Spencer Sydow é doutor em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), onde desenvolveu sua tese sobre a Teoria da Cegueira Deliberada aplicada aos Delitos Informáticos. Também mestre em Direito pela USP, sua dissertação focou nos delitos informáticos próprios sob uma perspectiva vitimodogmática. Com uma carreira sólida no Direito Informático e Criminal, Spencer é professor e palestrante em diversas instituições de ensino e cursos preparatórios, além de ser autor de livros na área. Foi presidente do Conselho Estadual de Direito Digital da OAB/SP (2019-2021) e atua como Conselheiro do Comitê Gestor da Internet Brasileira, contribuindo para debates sobre o impacto do mundo digital no ordenamento jurídico.
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