O tema de herança digital envolve relação com tudo que é digital, sendo até o Bitcoin, os NFTs e as criptomoedas alvos do direito sucessório. E para compartilhar seus conhecimentos sobre o tema e comentar sobre um caso recente de herança no Brasil que citou esse assunto, o Livecoins conversou com o advogado especialista na área Estevan Facure Giaretta.
Como ele é especialista também em casos envolvendo criptomoedas, explicou a relação do direito sucessório com essas tecnologias.
Como o conceito de herança digital se relaciona com o Bitcoin, NFTs e demais criptomoedas?
Estevan: O conceito de herança digital engloba tudo o que foi deixado pelo falecido nas plataformas digitais, desde uma simples postagem no Facebook, um e-mail ou um tweet, até criptomoedas, NFT’s e vídeos monetizados no YouTube, por exemplo.
Portanto, quando uma pessoa morre, ela deixa bens “visíveis”, como veículos, imóveis, livros, obras de arte e etc., mas também deixa bens “invisíveis” (digitais), como as criptomoedas. Todo o patrimônio, visível ou invisível, é passível de partilha entre os herdeiros.
O que é dever e direito de uma família em casos assim? Como acessar esses valores se o falecido não deixou nada declarado? É possível, por exemplo, pedir extratos em corretoras para buscar verificar a existência dessas moedas?
Estevan: Se uma pessoa falece sem deixar testamento, seu patrimônio é dividido entre os herdeiros na forma prevista no Código Civil brasileiro. A mesma coisa acontece com a herança digital.
Permita-me ilustrar com um exemplo: caso uma pessoa faleça e tenha por herdeiro apenas um filho, este filho tem o direito de herdar a totalidade do patrimônio do seu falecido pai (tanto a herança “convencional” quanto a digital).
Imagine, agora, que esse filho saiba que o seu falecido pai tinha investimentos em criptomoedas nas empresas Foxbit e na Binance, mas não sabe a quantidade e nem em quais moedas o pai investiu. O que esse filho pode fazer?
Esse filho pode entrar na justiça e pedir para o juiz da causa oficiar (expedir um ofício com uma ordem judicial) ambas as empresas, notificando-as para que informem quais foram os investimentos feitos na conta do falecido.
Então, as empresas informarão no processo quais moedas o falecido investiu, a quantidade de cada moeda e se existe saldo em dinheiro brasileiro (real). Agora, com essas informações em mãos, o filho pode pedir para que esses valores integrem o inventário do pai.
É possível sim, portanto, pedir o extrato para as empresas. Importante destacar, ainda, que se o falecido deixou o dinheiro em uma cold wallet e ninguém sabe a senha ou a cold wallet foi perdida, esse dinheiro não poderá ser recuperado. Eis o grande risco, portanto, dessa forma de armazenamento das criptomoedas.
Em casos assim, Token, Criptomoedas, NFTs, são tudo a mesma coisa perante a lei?
Estevan: Sim! Tudo está englobado no conceito de herança digital e todos são passiveis de partilha entre herdeiros.
4- O valor dos bens são determinados pelo mercado?
Estevan: A resposta é positiva, mas eis aí o grande problema que os processos de herança digital enfrentarão: a precificação desses itens digitais.
Se a herança for composta apenas por moedas digitais, torna-se mais fácil a resolução da demanda, pois cada moeda tem a sua cotação diária. Desta forma, a moeda é avaliada no momento da divisão da herança para fins de partilha sucessória.
Porém, em casos de NTF’s, por exemplo, onde o valor varia consideravelmente, pode haver briga entre herdeiros quanto ao valor do bem. Nesta hipótese, o juiz pode pedir auxílio a um avaliador judicial expert na área digital para precificar o item.
Deixe-me ilustrar para ficar mais fácil a compreensão: imagine que o falecido havia comprado uma peça de roupa digital em um jogo online pelo preço de R$ 10.000. Anos depois, a pessoa falece. Alguém pagaria os mesmos dez mil ou mais pelo mesmo item? Isso depende de uma série de fatores: o jogo ainda é popular? O número de jogadores aumentou ou diminuiu? Alguma pessoa ainda tem interesse em comprar esse NTF? Portanto, pode ser que o NTF tenha valorizado ou desvalorizado sobremaneira. O mercado dirá o preço.
Esse assunto de herança digital foi recentemente debatido pelo Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais no processo n.º 1.0000.21.190675-5/001. Poderia nos explicar o que aconteceu nesse julgamento?
Estevan: Neste caso, uma herdeira não conseguia abrir os dispositivos do falecido (um aparelho de celular e um notebook da marca Apple), pois não tinha a senha desses aparelhos.
A herdeira chegou a levar os aparelhos em uma licenciada da Apple, porém foi informada que a empresa só desbloquearia os produtos por meio de uma ordem judicial. A herdeira pediu, portanto, ao Poder Judiciário para que a empresa Apple efetuasse o desbloqueio dos dispositivos (informasse, portanto, as senhas do falecido).
Existe, no entanto, o direito à privacidade do ser humano, tanto dos vivos quanto dos mortos. E, sendo assim, desbloquear os aparelhos do falecido poderia colocar em risco a sua intimidade (mesmo morto), bem como a intimidade de terceiros (como a troca de mensagens privadas como e-mails, por exemplo).
O grande precedente que tivemos com o caso acima foi o seguinte: os desembargadores entenderam que essa violação de intimidade é possível em casos que o pedido seja justificado na herança digital.
Portanto, caso a herdeira tivesse mencionado que precisava desbloquear os aparelhos para ter acesso às contas do falecido para levantar os valores de criptomoedas, por exemplo, o juiz teria autorizado o acesso aos aparelhos.
É necessário, contudo, justificar ao juiz a imprescindibilidade do desbloqueio dos aparelhos e a impossibilidade de conseguir acessar essa herança digital por outros meios. No caso, o desembargador relator entendeu que a herdeira não justificou “o porquê do interesse em acessar os dados pessoais do de cujus”, negando o seu pedido de desbloqueio.
Qual dica você dá para aos nossos leitores?
Estevan: Se você, leitor, investe em criptomoedas ou possui qualquer tipo de patrimônio digital, seria prudente informar seus familiares sobre suas contas e senhas para eles conseguirem liberar esses valores de forma simples após a sua morte.
Para ter mais segurança ainda, você pode fazer um testamento por escritura pública em cartório nomeando um testamenteiro responsável para administrar essas quantias e distribuí-las aos herdeiros conforme a sua vontade.