Justiça diz que ordem de compra é “lei entre partes” e faz corretora indenizar cliente

A decisão determina que, além de ter de devolver o valor equivalente aos litecoins do cliente (R$ 10.068), a empresa terá ainda de pagar R$ 5.000 em danos morais.

A justiça paulista decidiu que a exchange BitcoinToYou errou ao cancelar ordens de compra realizadas por cliente que comprou litecoins a preços muito baratos em 2018. No entender da justiça, a relação entre cliente e corretora deve se pautar pelo Código de Defesa do Consumidor e as ordens realizadas na plataforma equivalem a “contrato de compra e venda”, devendo ser honradas por ambas as partes.

A decisão, tomada pela juíza Thais Migliorança Munhoz, da 1ª Vara do Juizado Especial Cível de Campinas, determina que, além de ter de devolver o valor equivalente aos litecoins do cliente (R$ 10.068), a empresa terá ainda de pagar R$ 5.000 em danos morais.

Como mostramos na reportagem “Exchange cancela ordens de compra e clientes podem ter perdido milhares de litecoins”, os problemas com a exchange começaram no início de novembro de 2018 e atingiram diversos clientes.

Na reportagem acima, contamos o caso do trader Carlos Ney da Silva Sousa, professor de inglês e morador de Santarém, Pará. Em novembro do ano passado, ele havia comprado, como diversos outros internautas, muitos litecoins a um preço baixíssimo. Posteriormente, a exchange cancelou suas ordens de compra, bloqueando seu saldo e inclusive acusando-o de ter feito “saques indevidos”.

Processo que andou rápido

Mas se Carlos tentou sem sucesso a via do acordo com a BitcoinToYou, este não foi o caso de Daniel Ziviani Cassettari. Daniel processou a exchange por ter retido cerca de 52 LTCs seus, em 8 de novembro de 2018, data em que a moeda estava valendo cerca de R$ 210. Nos dias que se seguiram, o valor do ativo foi caindo, chegando a R$ 168 no dia 16, e baixando ainda mais.

Ainda sem conseguir sacar, Daniel seguiu discutindo com o suporte, mas foi surpreendido por uma mensagem que, nas entrelinhas, o acusava de ter feito uma ação irregular ao sacar anteriormente outros litecoins que havia comprado e exigia que tais moedas fossem devolvidas:

Resposta da BitcoinToYou sugere que trader comprou LTCs "indevidamente"
Resposta da BitcoinToYou sugere que trader comprou LTCs “indevidamente”

Além disso, a plataforma passou por um período fora do ar, de 15/11 a 19/11/2018 e, após isso, quando o autor conseguiu acesso ao sistema, não havia mais a opção de negociar LiteCoins. A única moeda possível de ser negociada era o Bitcoin.

Por fim, em 22/11/2018, Daniel recebeu uma resposta, segundo seu processo, informando que:

[…] após análises, concluíram que não possuía saldo para ser sacado, pior ainda, informam que o saldo de criptomoedas do autor era negativo e que era preciso devolver os LTCs sacados para regularização da conta.

Tendo então seu saldo em criptomoedas todo confiscado, Daniel teve de partir para a via judicial. Em sua petição, ele questionou:

Por analogia, basta imaginar que determinada pessoa compra um volume de ações da Petrobras e 10 dias depois a Bovespa manda uma mensagem pedindo para que as ações sejam devolvidas. Verdadeiro absurdo imaginar uma situação dessas!!!

“A culpa é do sistema”

A BitcoinToYou, em essência, defendeu-se dizendo que seu sistema havia sofrido com um erro no início de novembro e que isso tinha ocasionado a emissão de ordens com valores abaixo do mercado. Para a exchange, Daniel e todos os outros usuários que compraram LTCs mais baratos na plataforma estavam cometendo “enriquecimento ilícito”.

Print da plataforma BitcointoYou indicando saldo de mais de 1800 LTCs de Carlos
Print da plataforma BitcointoYou indicando saldo de mais de 1800 LTCs de Carlos

Além disso, a exchange defendia que a ação não deveria correr nos Juizados Especiais, nos quais que fora apresentada, e que não se tratava de um caso de direito do consumidor. Por fim, pedia pela improcedência do pedido de Daniel e ainda cobrava que o mesmo ressarcisse a empresa pelo lucro que teria obtido com a venda de LTCs compradas inicialmente e vendidas em sequência.

Ganho para o cliente

A primeira questão da justiça foi concluir que, sim, o caso cabia ao Juizado Especial, por ser de pequeno valor e porque, no pedido inicial, todas as informações foram prestadas de forma a descartar necessidade de perícia. Dessa forma, deu ganho ao trader, decidindo:

a) CONDENAR a ré ao pagamento de R$ 10.068,09 à parte autora, com a incidência de juros de mora de 1% ao mês, da data da primeira tentativa de saque do seu saldo de LITECOINS negado pela ré, e correção monetária pela Tabela Prática do E. TJSP, incidindo a partir da data do desembolso;

b) CONDENAR a empresa requerida a pagar à parte autora a quantia de R$ 5.000,00, a título de danos morais, com a incidência de juros de mora de 1% ao mês, da data da retenção de seu saldo de LITECOINS, e correção monetária pela Tabela Prática do E. TJSP, incidindo a partir da prolação da sentença.

Decisão gera jurisprudência

Para o advogado Raphael Pereira de Souza, do escritório R Souza Advocacia, que tem forte trabalho em questões relacionadas a criptomoedas, a decisão é um marco importante para o mercado:

A decisão considerou que é aplicável o CDC. Isso é vantajoso porque, uma vez que é aplicado o CDC, o ônus, a responsabilidade por provar, principalmente as questões técnicas, passa a ser da corretora. Fixou também que, no caso de falha na plataforma, a responsabilidade é da corretora. No finalzinho, a juíza disse que a operação de compra e venda configura um contrato de compra e venda, que, no caso, faz lei entre as partes.

Segundo o advogado, essa compreensão sobre o contrato implica que uma vez que o usuário se submeteu aos Termos de Uso e passou a utilizar a plataforma, todas essas regras da plataforma devem ser seguidas: “Então se a plataforma diz que não pode alterar, que é só intermediária, e coloca à disposição a plataforma para uso do consumidor, ela tem que seguir exatamente os termos de uso, exatamente as regras do negócio”, explica.

Para Souza, a decisão pode embasar outras decisões parecidas:

É uma decisão nova, que explorou a responsabilidade da plataforma no caso de falha e erro. […] Quando se trata de criptomoedas, não é regulamentado, e a jurisprudência sobre o tema é tão escassa, a decisão é importante e pode ser utilizada inclusive por outros usuários, como mais um argumento para quem se sentiu lesado.

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Sui Teixeira
Sui Teixeira
Sui Teixeira é jornalista desde 2001, formada pela USP. Trabalha ainda como produtora de jingles, é programadora amadora e entusiasta de ciência e tecnologia.

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