Entre as principais características da blockchain, tecnologia que sustenta as mais fortes criptomoedas do mercado, inclusive o Bitcoin, a imutabilidade talvez seja a mais estrutural em termos de manter a confiança das pessoas e as trocas seguras de informação.
Só lembrando, essa imutabilidade é tão mais forte quanto mais antigos são os dados armazenados, já que cada bloco acrescentado à blockchain aumenta fortemente o poder computacional necessário para refazer os blocos mais antigos.
Mas, e quando, por um motivo legal, é necessário modificar algo numa blockchain? À primeira vista, isso parece uma péssima ideia para criptomoedas, mas pode ser algo realmente necessário, por exemplo em um caso como a recente descoberta de pornografia infantil da blockchain do Bitcoin. Pode ser também algo vantajoso em casos de repositórios de documentos ou acompanhamentos de cadeias produtivas.
Apagamento local
É exatamente isso o que propõe um estudo recente publicado no site ArXiv, Cornell University, nos EUA, desenvolvido pelos pesquisadores Martin Florian, Sophie Beaucamp, Sebastian Henningsen e Björn Scheuermann.
A íntegra do estudo, denominado “Erasing Data from Blockchain Nodes”, é bastante detalhada e pode ser lida no site ArXiv, repositório da Cornell University.
O que diferencia o estudo de outras abordagens anteriores é que a proposta do grupo é de que o apagamento possa ser feito localmente, ou seja, em nós específicos. Isso permitiria que os nós implantados em diferentes países pudessem responder às diferenças de normas, legislações e decisões judiciais de cada lugar.
Com o nome “Functionality-Preserving Local Erasure”, ou simplesmente FPLE, os pesquisadores propõem uma técnica bastante simples, “uma solução pragmática para o desafio de apagar localmente dados que são potencialmente críticos quanto a consenso no futuro, mantendo o núcleo de funções dos nós e seus benefícios”.
Ou seja, eles propõem um formato de apagar os dados sem “quebrar” a cadeia de blockchain e sem necessidade de modificar o protocolo de transações usado atualmente.
Para isso, sempre que um dado é apagado da blockchain, seriam necessários somente dois procedimentos diferentes:
1) Os nós passam a ignorar e não retransmitem transações não processadas cuja validação depende de dados apagados.
2) Se uma transação dependente de dados apagados é incluída, o blockchain assume que as verificações das operações relacionadas com os dados apagados foram realizadas positivamente.
“Em essência”, explicam os pesquisadores, “para o subconjunto de transações e blocos para o qual a validação depende diretamente dos dados brutos apagados (e apenas para esse subconjunto), o nó de apagamento assume um modo de validação semelhante à verificação de pagamentos simplificados (SPV)”.
Razões para apagar dados de blockchains
Entre as razões que sustentam necessidades de apagar dados de blockchains, as mais fortes são jurídicas. As principais delas, apontadas pelo estudo, são:
- Respeito do Direito Penal – Potencialmente, as blockchains podem armazenar e distribuir dados dos quais o armazenamento e a distribuição são ilegais em determinados países ou estados. Em certos casos, a responsabilidade penal dos operadores de nós pode ser evitada quando a exclusão de dados é possível. É o caso por exemplo da pornografia infantil.
- Privacidade e proteção de dados – Como sabemos, garantias de privacidade para dados incluídos em uma blockchain pública não é algo trivial do ponto de vista técnico. Se não houver precauções explícitas tomadas, a confidencialidade é próxima de zero. Já em usos não financeiros, existe a possibilidade de publicação de dados que ofendem a privacidade sem consentimento, por exemplo em práticas de doxing. Se a justiça determina a retirada desses conteúdos, o operador terá de encerrar os nós que trabalha. A não ser que tivesse uma forma efetiva de apagar, localmente, trechos da blockchain.
- Outras normas legais, éticas e sociais – Os pontos levantados são apenas uma pequena seleção de razões para se ter a possibilidade de uma supressão local do conteúdo de um nó completo de blockchain. O estudo lembra ainda problemas jurídicos em relação a direitos de propriedade intelectual, difamação, distribuição de malware, só para citar alguns exemplos.
Incentivo ao aumento dos nós
Os pesquisadores fazem uma análise interessante que indica a possibilidade de um aumento do número de nós da blockchain, caso seja implantando um modelo de apagamento local.
Eles refletem que um possível operador de nó se vê sempre com uma escolha binária: ou ele implanta um nó completo, e neste caso terá de armazenar todos os dados que qualquer pessoa já adicionou ao blockchain, ou participa como um cliente.
A questão é que as blockchains podem trazer informações arbitrárias, incluindo pornografia, materiais não autorizados por terceiros ou com outras questões legais e éticas controversas.
Por isso, se os operadores de nó puderem se recusar a armazenar e distribuir determinados dados, isso os incentivaria a criarem nós completos.
Discussão aprofundada
O estudo, como explicado, está disponível online e levanta inúmeras outras questões, trazendo tanto referências a outras abordagens de apagamento em blockchains, como discussões sobre segurança das informações e confiança dos usuários.
Vale a pena uma boa olhada, até porque são temas que podem motivar legislações e regulamentações diversas em diferentes países.