Desde que eu caí na toca do coelho, algo sempre chamou a minha atenção: como os bitcoinheiros possuem um ethos próprio bastante particular. Primeiro, deixa eu explicar rapidamente o que é “ethos”: basicamente ethos é o conjunto de valores e crenças que uma comunidade segue e compartilha (se você quiser uma explicação detalhada, veja a explicação do Wikipédia aqui).
Também faz sentido para o texto explicar que o que eu considero um “bitcoinheiro”.
Um bitcoinheiro é alguém que realmente entendeu a tese do Bitcoin e as suas mais variadas implicações. É difícil achar uma definição simples para isso, mas digamos que é alguém que já se dedicou mais de 100 horas aos estudos, que sabe explicar porque o Satoshi Nakamoto ter desaparecido é algo positivo e que possuí a grande maioria do seu capital (pelo menos o líquido) em bitcoin.
Outros termos utilizados para um bitcoinheiro é maximalista ou maximalista tóxico.
Para mim, foi incrível ir entendendo essa questão do ethos dos bitcoinheiros, pois eu já me identificava com a grande maioria desse ethos, antes mesmo de conhecer o Bitcoin. A coesão em torno desses valores e crenças só aumentou a convicção.
Essa coesão de valores faz com que diversas pessoas descrevem os bitcoinheiros como um culto de religiosos fanáticos.
O que faz sentido, visto que se nós plotassemos o comportamento dos bitcoinheiros com o dos fanáticos religiosos em um diagrama de Venn (aqueles gráficos com bolas que se sobrepõe), a sobreposição seria de uns 90% tranquilamente.
Uma religião possuí diversas características fundamentais:
- A crença em um Deus ou deuses (ou seja, um teísmo),
- Um mito fundador (Adão e Eva, por exemplo)
- Rituais de pertencimento e tradições (batismo, missa de domingo, circuncisão, uso de véus, quipás e assim por diante)
- Valores éticos e morais bem definidos
Essas características significam, por exemplo, que o Budismo é muito mais uma corrente filosófica do que uma religião propriamente dita.
Isso porque Buda era um humano (e não o filho de Deus), que se relacionou com humanos. O Budismo não possuí uma deidade central, então chamar ele de religião não é 100% correto, apesar dele possuir um mito fundador, rituais de pertencimento, tradições e valores éticos e morais bem definidos.
O mesmo se aplica ao Bitcoin. No sentido estrito, o Bitcoin não pode ser considerado uma religião, uma vez que não existem deuses associados ao conjunto de crenças que os bitcoinheiros seguem. OK, mas então quais são as outras características dos bitcoinheiros que fazem essa tribo parecer com uma religião? Ou, em outras palavras, qual o nosso ethos?
Provavelmente cada bitcoinheiro terá uma resposta ligeiramente diferente para essa pergunta. E todas estarão corretas, visto que uma das principais características do Bitcoin é ser uma rede descentralizada que não possuí um ponto único de verdade. Lancei essa pergunta no Twitter e recebi várias repostas, a maioria possuí um grande sentido comum e variações semânticas. Dito isso, vou tentar sintetizar abaixo quais são as crenças e valores que definem o nosso ethos.
“Don’t trust, verify”
Ou, em português, “não confie, verifique”. Para um bitcoinheiro, todo mundo é um golpista até que se prove o contrário.
Nós sabemos que não podemos confiar em ninguém além de nós mesmos e que as coisas não virão de mão beijada. Em outras palavras, não existe almoço grátis e se alguém está te oferecendo isso, provavelmene é algum tipo de golpe.
Nós bitcoinheiros aprendemos desde sempre a não confiar no sistema tradicional e incentivamos os novatos a assumir a responsabilidade pela custódia das suas moedas.
Assim como o “don’t trust, verify”, este é uma crença poderosíssima para ensinar as pessoas sobre responsabilidade individual. Nós somos profundamente desconfiados do sistema e das pessoas. Essa cena do filme Matrix em que o Morpheus está explicando para o Neo como a Matrix funciona ilustra muito bem este conceito.
Dont trust, verify é um valor que gera uma profunda mudança em todos os bitcoinheiros, visto que a consequência natural é o aumento de um forte senso de responsabilidade individual.
Essa forma de enxergar o mundo te obriga a repensar todas as suas escolhas e todos os dados em que você se baseou para fazer essas escolhas. Por exemplo: você acha mesmo que o ideal é comer a cada 3h como os nutricionistas fiat tanto falam?
“Not your keys, not your coins”
No bitcoin, caso você perca as suas chaves (a senha para acessar os seus satoshinhos), ninguém poderá te ajudar. Você terá perdido esse dinheiro para sempre.
Isso é totalmente diferente do mundo fiat, onde você pode ligar para um gerente do banco caso você perca o seu cartão de crédito ou esqueça a sua senha. Não é a toa que estimasse que algo cerca de 20% dos bitcoins estão perdidos e nunca mais serão acessados. Noticias de pessoas revirando lixões pelo mundo em busca de HDs antigos são comuns e servem de alerta para todos os bitcoinheiros mais responsáveis.
Isso pode soar assustador para muitos, mas se pergunte: como melhorar o mundo sem que os indivíduos desenvolvam responsabilidade individual?
Fix the Money, Fix the World
“Conserte o dinheiro, conserte o mundo”. Ou, na sua versão mais completa: “Fix the Money, Fix the Individual, Fix the World”.
Nós brasileiros temos uma péssima relação com dinheiro, geralmente ele é fonte de angústia e apreensão.
Nós somos ensinados desde cedo que “mais fácil é passar um camelo pelo fundo de uma agulha, do que entrar um rico no reino de Deus” ou ainda que “o amor ao dinheiro é a raiz de todos os males”. Esses conceitos moralistas são enganosos e nos fazem ter uma certa aversão natural ao dinheiro e aos ricos.
Mas na realidade o dinheiro é a tecnologia inventada pelo ser humano que nos permite realizar trocas voluntárias com alguém de fora da nossa tribo. Se não fosse o dinheiro, a humanidade nunca teria ultrapassado o número de Dunbar e estaria restrita a pequenas tribos de 100 a 230 pessoas aproximadamente. O dinheiro é a camada base de comunicação de valor, sem ele trocas não ocorreriam e pessoas com interesses diferentes não poderiam se conectar.
Como todo bitcoinheiro sabe, a grande maioria dos problemas do mundo está associada ao fato de que essa camada base de comunicação de valor (o dinheiro) está quebrada.
Basicamente, o dinheiro foi usurpado da população e agora é controlado por uma pequena elite de banqueiros e Estados, que manipulam essa camada base de acordo com os seus próprios interesses. Por conta dessa corrupção do dinheiro, também conhecida como Efeito Cantillon, que existe tanta desigualdade e injustiça no mundo.
Liberdade em 1º lugar
A liberdade é com certeza um dos valores supremos de todo bitcoinheiro. Não existe liberdade real sem liberdade financeira. Liberdade de um sistema opressor, que corrompeu a nossa camada base de comunicação e se apropriou dela.
O nosso sistema financeiro atual (o sistema fiat) é lastreado a partir da emissão de dívida, o que significa que o dinheiro fiat precisa ser inflacionário, pois a única forma de pagar essas dividas é gerando inflação.
Um sistema inflacionário baseado em dívidas é basicamente um sistema de escravidão por dívidas, onde você precisa trabalhar cada vez mais para receber um dinheiro que vale cada vez menos.
Ou, como o Michael Saylor sintetizou esse pensamento do Hayek: “A estrada para a servidão se consiste em trabalhar exponencialmente mais para ganhar um dinheiro que vale exponencialmente menos”.
Um dinheiro inflacionário que vale cada vez menos é uma maneira disfarçada de roubar o tempo das pessoas. O tempo que elas se dedicaram a gerar valor para a sociedade é armazenado na forma de dinheiro, então se esse dinheiro perde valor, o tempo das pessoas foi roubado delas e agora elas terão que trabalhar mais.
O Bitcoin quebra no meio essa lógica cruel ao ser um dinheiro deflacionário, ou seja, ele aumenta o seu poder de compra futuro ao invés de diminuir o seu poder de compra futuro. Nada torna um indivíduo mais livre e soberano do que um dinheiro que o empodera a falar “não”. Não, eu não vou trabalhar horas extras pois quero ficar com a minha família. Não, eu não vou me sujeitar a isso por eu não preciso. E assim por diante.
Essa liberdade que o Bitcoin traz também permite que os bitcoinheiros escapem das armadilhas do coletivismo. Quando você está preso numa situação de merda e não sabe como escapar, e pior ainda, nem consegue articular e entender o porquê de você estar preso nessa situação, é muito fácil comprar discursos coletivistas de “bem comum” e de “taxas as grandes fortunas”.
Em compensação, quando você entende o Bitcoin e todas as suas derivações, você entende que você é o único responsável por si mesmo e que, na verdade, são esses mesmos políticos e banqueiros que usam esses discursos coletivistas vazios que estão roubando o seu tempo.
Pensamento de longo prazo
Uma das grandes fichas que caem quando alguém entende de verdade o Bitcoin e se torna um bitcoinheiro é que o custo oportunidade de tudo é o Bitcoin.
Esse pensamento é extremamente pesado, visto que todos nós compramos muitas coisas idiotas nos últimos anos, e esse dinheiro teria sido muito melhor investido se tivesse sido transformados em satoshis.
Uma consequência de entender isso é a mudança de preferência temporal, ou seja, os bitcoinheiros deixam de valorizar as gratificações imediatas e passam a desenvolver um pensamento de longo prazo.
Esse pensamento de longo prazo vale para decisões financeiras, como por exemplo comprar um carro novo ou continuar indo de bicicleta ou ônibus para o trabalho, mas também acaba percolando diversas outras partes das nossas vidas.
São comuns os relatos de bitcoinheiros que começaram a fazer mais atividade física ou a ler e estudar mais a partir do momento que eles realmente entenderam o Bitcoin. E por que isso? Porque não adianta nada ficar rico e estar com a saúde toda cagada ou não ter se desenvolvido intelectualmente.
As consequências do pensamento de curto prazo são vistas em todos os lugares da nossa sociedade, repleta de gordos reclamando de “gordofobia” ao invés de começarem a se exercitar e de pessoas que preferem ver uma série no Netflix ao invés de ler um livro.
E o Bitcoin conserta isso, ensinando as pessoas a adiarem as gratificações e com isso irem bem no teste do marsmellow.
Descentralização é superior
A descentralização é uma característica fundamental da rede Bitcoin. É ela que garante que as transações são incensuráveis, o que significa dizer que as transações de Bitcoin não podem ser interrompidas por governos corruptos ou mesmo por pessoas discriminando outras pessoas por cor, credo ou orientação sexual.
Além disso, sistemas descentralizados são muito mais eficientes em processar informações e lidar com incertezas que sistemas centralizados. Um belo exemplo disso é citado no livro Antifrágil, (do ghost-writer?) do Nassim Taleb.
Um ministro da URSS foi visitar Londres para aprender e talvez importar lições positivas para a União Soviética. Depois de um dia de visitar e de ser apresentado a banqueiros e ministros ele ainda tinha uma dúvida: como vocês fazem para distribuir o pão tão bem e nem ter filas?
Essa pergunta não fez sentido nenhum para os londrinos, uma vez que eles simplesmente não faziam nada em relação ao pão, eles simplesmente deixaram o livre mercado funcionar. Já na URSS existiam filas gigantes para a distribuição dos pães e os cálculos de quanto trigo produzir, quanto pães fazer por dia e como distribuir esses pães eram complicadíssimos.
Esse exemplo ilustra um grande problema de sistemas centralizados que é o intervencionismo ingênuo. Ou seja, mesmo que você esteja muito bem-intencionado e acredite estar fazendo o bem, a capacidade de processamento de informação de um sistema centralizado sempre será inferior à capacidade de processamento de um sistema descentralizado.
Um exemplo disso são os bandos de andorinha voando em bando, não existe um agente central dizendo como elas devem voar em bando, mas sim elas tomam decisões baseadas nas outras andorinhas no seu entorno.
A somatória dessas pequenas decisões em um grupo grande de andorinhas que gera o padrão final do voo coletivo delas. Em outras palavras, quando cada agente toma suas próprias decisões egoístas eles estão processando as informações de uma maneira muito mais eficiente do que um planejador central jamais faria.
Código Aberto
Um dos pilares fundamentais do ethos bitcoinheiro é o código aberto. Isso é válido no senso estrito dos programas de computador, visto que o código ser aberto que permite que ele seja verificado pela comunidade.
Os bitcoinheiros também valorizam o conceito de código aberto no sentido amplo, o que significa dizer que o conhecimento deve ser compartilhado.
Nós instintivamente rejeitamos os gatekeepers (expressão em inglês que significa “porteiro”, no sentido quem controla o fluxo do conhecimento) e acreditamos que a educação e o conhecimento deve ser livre.
Exemplos de gatekeepers são abundantes no mundo fiat, e os bitcoinheiros rejeitam todos eles. Um exemplo que para mim é muito ilustrativo e próximo, visto que antes do Bitcoin eu estava na academia perseguindo uma carreira universitária, é como as editoras de artigos científicos agem.
As editoras cobram 35 dólares pelo acesso ao conhecimento e não pagam nada nem para os revisores e nem para os autores desses artigos. Elas basicamente ganham bilhões de dólares (somente a Elsevier faturou mais de 9 bilhões de dólares em 2019) por ser a porteira desse conhecimento.
Graças ao pensamento de código aberto e a cazaquistanesa (e minha musa inspiradora) Alexandra Elbakyan, hoje em dia estudantes e pesquisadores tem acesso a todo o conhecimento acumulado pela humanidade de forma totalmente gratuita.
Proof of Work
O conceito de Prova de Trabalho (PoW, na sigla em inglês) é algo que foi esquecido na nossa sociedade fiat. Nela, quanto mais próximo você está da máquina de impressão de dinheiro, mais benefícios você colherá.
Assim, o seu talento e o seu esforço se tornaram coisas secundárias. Os valores foram distorcidos a tal ponto que hoje em dia “meritocracia” virou um palavrão e as empresas precisam contratar de acordo com a “diversidade” (entre aspas, pois essa diversidade não é diversidade de pensamento) e não com a competência.
Mas o Bitcoin não se importante com nada disso. A rede Bitcoin é apolítica, sem religião e sem a capacidade de discriminar ninguém. No Bitcoin, ninguém possuí vantagens injustas.
Para se tornar um bitcoinheiro é necessário muito trabalho. Muito estudo e dedicação. Pessoas inteligentes começam a entender o Bitcoin de verdade após umas 100 horas de estudos, pessoas normais precisam de pelo menos 1000 horas.
Se tornar um bitcoinheiro é PoW e por isso um dos mantras da nossa comunidade é que “cada um vai comprar bitcoin no preço que merece”. Eu concordo com isso, e estou dentro da toca do coelho há menos de 2 anos.
Eu poderia ficar ressentido e pensando no tamanho da oportunidade que eu deixei passar ao não comprar bitcoin antes, mas eu sou humilde o suficiente para entender que eu não mereci ter comprado antes por nunca ter me dedicado e estudado a fundo o assunto. Eu caí no conto das tulipas e isso não é culpa de ninguém, só minha.
Esse pensamento de PoW também gera um grande respeito a propriedade privada e ao mérito de cada um. Eu penso nos bitcoinheiros mais antigos como gurus com os quais eu posso e devo aprender e não com inveja. Eles tem PoW de uma época em que as informações eram mais difíceis e esse mérito ninguém tira deles.
Pseudônimos
Para muitos que ainda não se tornaram bitcoinheiros a nossa tribo parece estranha. O fundador é desconhecido, as discussões no Twitter são feitas por um monte de avatar, e mesmo o modelo de precificação que é mais levado a sério foi feito por um boné.
Para um bitcoinheiro é assim que o mundo deve ser. Nós rejeitamos argumentos de autoridade e suspeitamos profundamente de qualquer pessoa que tente se validar com credenciais. Nós suspeitamos de contas verificadas no Twitter e suspeitamos de pessoas que colocam que tem um MBA ou um PhD nas suas informações pessoais.
O mérito é das ideais, e nós julgamos e sempre julgaremos todas elas independente de qual for a fonte. Argumentos ad hominen não nos representam e, na verdade, geram o efeito contrário. Nós rejeitamos argumentos ad hominen por achar eles desonestos e enviesados.
Conclusão
Você pode pensar que o Bitcoin é um culto de fanáticos, uma religião ou uma corrente filosófica. Isso é uma questão semântica e depende da definição de religião que quisermos utilizar.
Se uma religião não precisar de teísmos, somos sim uma religião. Temos o senso missionário de ter encontrado uma verdade tão verdadeira que queremos mostrar ela para todas as pessoas que amamos. Queremos espalhar o amor e a salvação ao próximo, tal qual a maioria das religiões.
Você pode ou não concordar com esses nossos valores, mas eles são inegociáveis para um bitcoinheiro. E se você acha que o Bitcoin é uma religião ou corrente filosófica, você entende porque o Bitcoin nunca irá a zero.
Os romanos tentaram zerar o Cristianismo por mais 300 anos até que o imperador Constantino liberasse esse “culto de fanáticos”. Menos de 100 anos depois, o império romano já estava convertido ao Cristianismo. Ou, numa linguagem mais atual “ideias são a prova de bala”, como já dizia o filme V de Vingança.