O Bitcoin morreu. Viva ao Bitcoin!

A descentralização deu origem a diversas Escolas de Pensamentos sobre a moeda. Como as diferentes visões sobre Bitcoin surgiram (e morreram) ?

Por Tiago Simões – O sumiço do seu criador após apenas 2 anos de envolvimento com o projeto é um dos aspectos mais subvalorizados do Bitcoin.

O desaparecimento permitiu que o sistema se desenvolvesse de forma orgânica e sem uma figura central que poderia ser explorada por agentes externos ou influenciado pela sua própria pessoa. Como um filhote abandonado, o Bitcoin precisou crescer e ser resiliente às adversidades do mundo.

No meio desse cenário caótico, a quem recorrer quando precisamos definir ou alterar o sistema? O que ocorre quando a ideia do sujeito projeta o objeto de maneira que a sua verdade é uma mentira individual? Quais foram as visões sobre o que o Bitcoin deveria ser e suas consequências?

Visões:

Nem sempre as invenções seguem o caminho para as quais foram concebidas, e isso não é obrigatoriamente algo ruim. Talvez o melhor exemplo disso seja a gigante de bebidas avaliada em U$200 bi: Coca-Cola.

O produto inicial da empresa era um drink alcoólico que continha a premissa de ajudar na recuperação do vício à morfina.

Talvez por barreiras técnicas, talvez por questões estruturais ou até mesmo preferência de seus usuários: a realidade é que as invenções sofrem mudanças. E com o Bitcoin não é diferente.

Representação qualitativa da mudança de perspectivas, explicadas no artigo, sobre o Bitcoin entre seus apoiadores

 

A existência de múltiplas facetas pode contribuir para as confusões dos mais iniciantes. Os artigos e guias carregam consigo a “Escola de Pensamento” do autor e podem trazer visões não necessariamente compatíveis com outras absorvidas pelo leitor.

Na ausência de um líder, apoiadores do projeto referem-se aos primeiros documentos e registros públicos numa tentativa de decifrar o que Satoshi verdadeiramente queria para a moeda. Não diferente de como juízes do Supremo Tribunal que se debruçam sobre a Constituição e aplicam sua antiga sabedoria a casos contemporâneos.

Outros, no entanto, rejeitam a análise de textos antigos e, por sua vez, focam em análises pragmáticas do contexto atual, relegando essas escavações históricas para àqueles que se prendem ao passado para não perderem sua relevância.

Conflitos internos dentro do Bitcoin resultam, então, da projeção de visões que são mutualmente exclusivas sobre o protocolo e dos atritos causados por isso. Além disso, eventos externos e cataclismos influenciam na adoção e abandono dessas visões — que são tudo, menos estáticas.

2009 & 2010: “Descoberta do Fogo”

Os primeiros 2 anos do Bitcoin foram marcados por muito ceticismo dentro da própria comunidade.

Dessa forma, grande parte dos seus usuários iniciais entendiam Bitcoin apenas como um “Teste de notas virtuais”, ou seja: um projeto experimental que pudesse replicar as características do papel moeda em um ambiente digital. Com o passar dos anos, essa visão foi evoluindo dentre os adeptos do projeto, e hoje se existe um consenso: O Bitcoin já virou realidade.

Além dessa, outras duas visões, que se chocariam em 2017, surgiram em relação ao projeto: Bitcoin como uma “Rede de Pagamentos barato(a)” e Bitcoin como uma espécie de “Ouro Digital resistente à censura”.

Os simpatizantes com a ideia de que o Bitcoin deveria servir como uma rede de pagamentos acreditam num cenário em que a moeda seja utilizada cotidianamente ao redor do mundo, de maneira similar à VISA/MasterCard.

De maneira obstante, os apoiadores da teoria de equivalência entre Ouro e Bitcoin sugerem que a característica que melhor define a moeda é como Reserva de Valor, e não seu uso cotidiano.

Whitepaper do Bitcoin: Motivo de Grande Confusão em 2017

Os propulsores da linha de pagamentos possuem como principal argumento a primeira frase em que o Bitcoin foi mencionado e o título do seu documento original: “Bitcoin: Um sistema ponto-a-ponto de ‘dinheiro’ eletrônico”. A ideia seria que ao usar a palavra “cash”, Satoshi estaria explicitando a intenção do sistema: ser usado como meio de trocas/pagamentos. [1]

Na outra ponta estão os proponentes do Bitcoin como Reserva de Valor. Esses explicam que, por causa de limitações técnicas, é inviável a utilização da moeda como meio de pagamentos. O argumento seria que mudanças na rede com a tentativa de aumentar sua capacidade resultariam em consequências graves: perda de confiabilidade e centralização.

Esse último grupo conta ainda com o apoio de Hal Finney (RIP), um dos primeiros e mais famosos desenvolvedores do Bitcoin. No post de 2010 abaixo, Finney descreve o problema de escalabilidade que Bitcoin encontraria e sua visão para o futuro do projeto.

Tradução livre, fonte original: https://goo.gl/MR53N5

Não observado facilmente, a diferença entre os dois grupos diz respeito à forma como se é enxergado o espaço disponível na Blockchain. O grupo alinhado com a ideia de pagamentos percebe o espaço como um direito, enquanto que o segundo o visualiza como uma commodity/serviço.

Durante muito tempo as duas visões coexistiram com alguns atritos, mas discussões esquentaram com o aumento da popularidade (e uso) do Bitcoin. Em 2016, Mike Hearn, na época um dos desenvolvedores mais antigos da moeda, anunciou sua despedida por não concordar com o rumo que o projeto tomou. Em 2017 o embate ressurgiu mais forte e o resultado foi a separação da moeda entre as duas ideologias: Bitcoin e Bitcoin Cash.

2011 & 2012: “Criação de Ferramentas”:

Em 2011 o ecossistema ao redor do Bitcoin já havia crescido: existiam alguns serviços de cartões de presentes (gift cards), Wikileaks e EFF já aceitavam doações na moeda e, principalmente, já se existia corretoras onde era possível comercializar a moeda.

A existência dessas casas de câmbio permitiram um acesso mais fácil à moeda e, com isso, incentivaram desenvolvedores e serviços a adota-lá. Foi no meio desse cenário que surgiu Silk Road, criado pelo jovem Ross Ulbricht.

Silk Road era um marketplace online operado na Dark Web, por isso a maior parte das transações dos seus usuários eram relacionadas a drogas. O site viria a movimentar mais de 9 milhões de Bitcoins, ou equivalente a U$1.2 bi quando o site foi fechado.

Silk Road ou “Caminho da Seda”, o nome do site fazia alusão a antiga rota comercial

O aumento da popularidade desse serviço fez surgir uma narrativa entre os usuários de Bitcoin, de que o projeto seria de uma “moeda anônima”. Essa narrativa, apesar de equivocada [2], ainda é dominante entre os meios de notícias populares. Hoje já existem ferramentas que auxiliam no rastreamento de transações na criptomoeda, servindo como suporte para agentes governamentais.

A atração de novos desenvolvedores para a esfera do Bitcoin deu início a um nicho muito específico de pensamento sobre a moeda: Bitcoin como “plataforma descentralizada programável”. A ideia seria explorar a tecnologia distribuída do Bitcoin, a Blockchain, para criação de aplicações e utilidades além da original.

Nessa época surgiram as primeiras moedas alternativas ao Bitcoin, chamadas de altcoins. Dois exemplos marcantes da época são a Namecoin, que buscava uma solução para descentralizar o DNS usando a blockchain do Bitcoin e a Litecoin,como uma moeda alternativa, presente até hoje.

Além da criação de moedas alternativas, foi-se proposto sistemas que poderiam ser construídos em camadas superiores ou com o auxílio da rede Bitcoin. Infelizmente, na época, não se foi feito muito progresso nessa área, mas a narrativa tem voltado desde 2017 com novos desenvolvimentos na Lightning Network, uma camada para microtransações instantâneas como proposto pelo Hal Finney.

Entre as pessoas que comercializavam o Bitcoin e essas moedas, os traders, a primeira acabou adquirindo uma nova visão, a de uma “moeda reserva” para esse novo mercado que estava surgindo. Essa perspectiva permanece até hoje entre essa parcela, muitos enxergando o Bitcoin como alpha[3] do sistema.

2015–2018: “A colheita”

Criada em 2010, a Mt. Gox se tornou a maior corretora de Bitcoins no mundo. Relatórios indicam que a casa de câmbio realizava 70% das transações de Bitcoin na época. Conforme o bom ditado, sua queda foi tão especular quanto seu sucesso e, em 2013, cerca de 1 milhão de Bitcoins, equivalentes à U$450 mi na época, foram perdidos.

Tradução livre, original: https://goo.gl/u66pKQ

O que se seguiu foi um mercado de baixa para a cotação do Bitcoin, trazendo muita incerteza para os participantes do sistema, e que viria a durar 2 anos: até o final de 2015.

Por causa desses eventos a presença do Bitcoin na mídia cresceu consideravelmente e acabou atraindo a atenção de novos participantes. O mercado de baixa e o desconhecimento fizeram com que uma parcela dessas pessoas não enxergassem um real valor ao Bitcoin, mas reconheciam sua utilidade.

O argumento seria que o tempo baixo de confirmações para pagamentos mundiais (15–60min) e taxas de transações mais baratas fariam do Bitcoin uma ótima evolução ao sistemas antigos como SWIFT — que inclusive possui críticas que age como um braço de força dos Estados Unidos sob outros países, e empresas como a Western Union. Dessa forma surgiu a visão do Bitcoin como um meio de “Remessa de Valor”.

A rápida recuperação do preço no começo de 2016 atraiu a atenção de muitos investidores do mercado financeiro. Devido à natureza descentralizada do sistema, muitos analistas e empresários enxergaram no Bitcoin uma forma de dinheiro livre de políticas econômicas desastrosas e um “ativo financeiro não correlacionado” com os mercados tradicionais.

O fundamento dessa visão seria que, por ter uma política monetária fixa, o Bitcoin não estaria sujeitos a manipulações comerciais da taxa de câmbio da moeda por um Banco Central.

Em 2020 a inflação anual do Bitcoin irá para 1.7% e, em 2024, para 0.8%

Além disso, como a barreira de entrada ao sistema é baixa, e nenhuma parte possui vantagem em relação à outra, o Bitcoin estaria fora de guerras geopolíticas e sanções econômicas, atuando como um “seguro financeiro” contra ações do Estado.

Essa visão trouxe a necessidade de se avançar as conversas nos âmbitos regulatórios entre diversos países e uma “institucionalização” do mercado, com empresas do mercado já estabelecidas e reconhecidas passando à adotar a ideia.

 

Embates de Visões:

Existe muitas interseções entre as visões, mas algumas são antagônicas. Abaixo, gráficos que mostram essas posições ao longo do tempo:

Bitcoin como ouro é a visão majoritária da rede atualmente
O próximo embate provavelmente será entre cyber-ativistas tentando implementar soluções de privacidades no Bitcoin e investidores mais conservadores.
As três primeiras visões do Bitcoin, descontando a experimental

[1] Satoshi provavelmente usou a palavra “cash” para comunicar-se propriamente com o grupo Cyberpunk, para qual o e-mail foi enviado. A comunidade já tentava há muitos anos criar um sistema que pudesse replicar características de um papel-moeda: anônimo, sem necessidade de terceiros e final.

[2] O Bitcoin não é anônimo. Apesar de não ser possível conectar, ao nível de protocolo, uma transação à uma pessoa, diversas ferramentas e corretoras trabalham em conjunto com agentes da lei para o recolhimento dessas informações. Portanto, dizemos que o Bitcoin é pseudoanônimo.

[3] “Alpha and beta for beginners”: https://goo.gl/uN6snV
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Inspirado nos trabalhos de Nic Carter e Tuur Demeester

Texto originalmente publicado no Medium

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