Esta publicação é uma tradução resumida do artigo Shelling Out: The Origins of Money escrito por Nick Szabo, publicado em 2002.
O dinheiro, junto com a linguagem, faz com que nos diferenciemos dos outros animais, permitindo a resolução de certos problemas como altruísmo e mitigação de agressão.
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O Dinheiro
No século 17, a Inglaterra tinha um problema em relação as suas colonias, lá havia uma escassez de moedas. A solução estava ali, porém os colonizadores demoraram alguns anos para perceber, os nativos tinham dinheiro todavia era bem diferente do qual os europeus estavam acostumados, os nativos não usavam metais e sim uma moeda mais fácil de ser encontrada em seu ambiente, ossos de suas presas. Especificamente, eles usaram wampum, conchas de amêijoa-mercenária e similares.
Apesar das amêijoas serem encontradas apenas no oceano, o wampum também era negociado longe do litoral. Os Iriquois conseguiram coletar a maior quantia de wampum entre as tribos, mesmo nunca habitado o litoral.
Após os colonizadores entenderem o que é dinheiro, eles começaram a aceitar wampum e negociar como nunca antes. O governador de Nova Amsterdã, hoje Nova Iorque, realizou um grande empréstimo de um banco inglês-americano em wampum. Então, entre 1637 e 1661, o wampum tornou-se oferta legal na Nova Inglaterra. Os colonos agora tinham um meio de troca e o comércio nas colônias floresceu.
O início do fim do wampum aconteceu quando os britânicos começaram a enviar mais moedas para as Américas e os europeus começaram a aplicar suas técnicas de fabricação em massa. Em 1661, a moeda do reino, de ouro e prata com cunhagem auditada e marcada pela coroa, possuíam qualidades monetárias melhores que as conchas, pondo um fim ao wampum. O wampum continuou sendo usado como meio de troca até o século 20, em alguns casos, todavia apareceu a inflação por conta das técnicas ocidentais de colheita e fabricação.
Colecionáveis
O dinheiro dos nativos teve várias formas, peles, dentes e outros objetos. Há 12.000 anos, o povo Clovis desenvolveu algumas lâminas, todavia elas quebravam com muita facilidade, eram inúteis para cortar, logo tais lâminas não estavam sendo feitas por outro motivo além do corte.
Os nativos americanos não foram os primeiros, os europeus também não mesmo tendo usado conchas, dentes, gado, metais e outros itens. Os asiáticos usavam todos estes itens, todavia também não foram os primeiros. Arqueólogos descobriram pendantes de conchas que datam do início do período paleolítico.
Nos anos 90, o arqueólogo Stanley Ambrose descobriu um esconderijo de colares feitos de casca de ovo de avestruz, no Quênia. A estimativa é que eles tenham pelo menos 40.000 anos. Dentes perfurados de animais foram encontrados na Espanha, também desta época. Conchas perfuradas também foram recuperadas de locais paleolíticos no Líbano. Recentemente, conchas regulares, preparadas como miçangas amarradas e datadas em mais de 75.000 anos, foram encontradas na cavernas de Blombos, na África do Sul.
Colares de conchas e dentes aparecem na europa de 40.000 a.C. em diante. Pendantes de conchas e dentes aparecerem na Austrália em 30.000 em diante. Em todos os casos, o trabalho é altamente qualificado, indicando que a prática é bem mais antiga, vinda da África.
Evolução, Cooperação e Colecionáveis
Poucas espécies cooperam na mesma proporção que os humanos paleolíticos, algumas como formigas, cupins e abelhas cooperam pois são parentes. Em alguns raros casos, há também uma cooperação contínua entre não-parentes, chamado de altruísmo recíproco. Como Dawkins descreve, a menos que uma troca de favores seja simultânea, uma parte pode trapacear, e eles costumam fazer isso. Esse é o resultado de uma teoria de jogo chamado de dilema do prisioneiro, onde se ambas as partes cooperassem, ambas teriam ganhos, mas se alguém trapaceia, este alguém ganha às custas do otário. Em uma população de trapaceiros e otários, os trapaceiros sempre vencem. Então os animais tem uma estratégia chamada de olho por olho: coopere até que a outra parte trapaceie, então vá embora. Essa ameaça de cooperação motiva a cooperação contínua.
O caso mais comum do mundo animal é entre parasitas e hospedeiros, cujo corpo compartilhado evolui para simbiotas. Caso seus interesses estejam alinhados, os dois ganhando com esta parceria, então ela continua, no entanto há mais que cooperação aqui, também há exploração, a situação é análoga aos tributos, desenvolvidos pelos humanos.
Um exemplo que não envolve parasita e hospedeiro compartilhando o mesmo corpo e evoluindo para simbiotas é o caso dos peixes limpadores, eles peixes nadam para dentro e fora da boca de seus hospedeiros, comendo as bactérias ali, beneficiando o peixe hospedeiro. O peixe hospedeiro pode trapacear, comendo o peixe limpador após a limpeza, todavia o custo benefício é ruim pois os peixes limpadores reconhecem os peixes grandes e criam uma ligação com eles.
Ganhos com Transferências de Riqueza
Pessoas, clãs ou tribos negociam voluntariamente porque ambos os lados acreditam que ganham alguma coisa. No começo do comércio intertribal, restrito a itens de alto valor, havia um forte incentivo para que cada parte entendesse suas convicções, assim o comércio beneficiava ambas as parte.
As negociações comerciais voluntárias não são os únicos tipos de transações que se beneficiam de custos de transação mais baixos. Essa é a chave para entender a original da evolução do dinheiro. Heranças familiares podem ser usadas como garantia, uma tribo pode obter tributos dos derrotados, bem como multas em relação a desacordos e descumprimento de leis.
Kula
Os objetos de valor kula dobraram de valor como dinheiro. Muitos produtos comercializados, principalmente produtos agríolas, estavam disponíveis em diferentes estações do ano e por conta disso não podiam ser comercializados como espécie. Os colecionáveis resolveram este problema por ser um dinheiro difícil de falsificar, vestível (por segurança) e circulado (literalmente). Colares circulavam no sentido horário e conchas no sentido anti-horário, em um padrão muito regular. Um colar seria mais valioso que o custo depois de algumas negociações e poderia circular por décadas. Histórias dos proprietários anteriores dos itens forneciam informações sobre crédito e liquidez.
Levar a sério o gráfico de fluxo real da circulação monetária é fundamental para entender a emergência do dinheiro. A circulação geral entre uma grande variedade de negociações não existia e não existiria na maior parte da pré-história humana. Sem ciclos completos e repetidos, os colecionáveis não circulariam e se tornariam inúteis. Um colecionável, para valer a pena que seja produzido, necessita agragar valor em suficientes transações que amortizem o seu custo.
Seguro contra Fome
A comida vale muito mais para pessoas famintas do que para pessoas bem alimentadas, sendo assim, uma pessoa faminta pode trocar objetos de valor por comida e por fim considera sua vida mais valiosa do que heranças familiares por exemplo. Ou seja, um grupo faminto trocaria um item valioso, que levará meses para conseguir, por um produto de caça que levou apenas alguns dias.
Através do uso de presas como dinheiro, grupos se especializaram em seguir determinadas espécies, migrando junto a seus rebanhos e encontrando oportunidades de comércio. Além da carne e do outro, esta movimentação que ocorria poucas vezes ao ano era suficiente para fazer com que os colecionáveis circulassem como dinheiro entre grupos diferentes.
Ou seja, havia uma fonte disponível de carne para que ninguém morresse de fome, um aumento na oferta total de carne, um aumento na variedade, mais produtividade devido à especialização em uma única espécie de presa.
Uma das principais coisas que os !Kung compram e vendem com seus itens colecionáveis são os direitos de entrar no território de outro grupo para caçar ou coletar comida. O comércio desses direitos é especialmente acelerado durante a escassez local, que pode ser aliviada pela procura no território de um vizinho. Os grupos marcam seus territórios com flechas e invadir tal território sem permissão equivale a uma declaração de guerra. O uso de colecionáveis para comprar tais direitos, constitui uma “apólice de seguro contra a fome”.
Altruísmo de Parentes Além do Túmulo
Pelas circunstâncias da época, do acaso do encontro entre dois grupos para negociar, garantias não podiam ser tomadas. Uma tripla coincidência, junto a oferta e demanda, foram as formações de novas famílias, mortes, crimes, vitórias/derrotas em guerras. Clãs e indivíduos se beneficiaram muito de uma transferência oportuna de riqueza durante esses eventos.
Na maioria das tribos de caçadores-coletores, essa riqueza apareceu como uma coleção de utensílios de madeira, ferramentas, armas, conchas e talvez uma cabana. Isso permitiu que indivíduos com comulativo de riquezas ao longo da vida pudesse deixar uma vantagem para seus descendentes.
Por fim, algumas heranças podiam seguir por várias gerações ininterruptamente, porém não formam um ciclo de transferências. As heranças só eram valiosas caso pudessem ser usadas para outra coisa, elas costumavam ser usadas em transações de casamento entre clãs que podiam formar ciclos de colecionáveis em um ciclo fechado.
O Comércio Familiar
Um exemplo de uma rede comercial de ciclo fechado está relacionado ao casamento. A mulher era considerada mais valiosa que o homem e o clã do noivo pagava um preço pela noiva.
Casamentos entre clãs podem formar um ciclo fechado de itens colecionáveis. De fato, dois clãs que trocam parceiros seriam suficientes para manter um ciclo fechado, desde que houvesse uma alternação. Um clã mais rico poderia casar seus filhos com noivas melhores, em sociedades monogâmicas, ou com um número maior de noivas, em sociedades poligâmicas.
Como herança, ação e tributo, o casamento exige uma tripla coincidência do evento, neste caso o casamento, com oferta e demanda. Parte desse preço pela noiva é pago em materiais de consumo imediatos, em plantas a serem colhidas e animais abatidos para a festa do casamento. Em sociedades de pastoreio ou agricultura, grande parte do preço da noite é paga em forma de gado, uma forma duradoura de riqueza. Geralmente a parte mais valiosa do preço da noiva em culturas sem gado, é pago com o que geralmente são as heranças familiares mais valiosas, como pingentes e anéis que são caros e duráveis. A prática ocidental de o noivo dar um anel à noiva já foi uma transferência substancial de riqueza e era comum em muitas outras culturas.
Os Espólios da Guerra
As taxas de mortalidade de antigamente são muito altas, uma das formas de acabar com a violência era através da tributação, o clã derrotado precisava pagar ao outro clã, sendo uma forma mais lucrativa para os vencedores.
O tributo era feito de forma imediata e mais frequentemente era exigido regularmente. Nessa caso, a tripla coincidência poderia, e por vezes era, evitada por um sofisticado cronograma de pagamentos que correspondia à capacidade da tribo derrotada de fornecer um bem ou serviço à demanda do vencedor. Todavia, mesmo com essa solução, o dinheiro primitivo poderia fornecer uma maneira melhor e simples em uma época em que os termos do tratado não podiam ser registrado porém precisavam ser memorizados.
Uma tática usada pelos perdedores era esconder seus colecionáveis, estratégia ainda usada hoje em dia em relação aos cobradores de impostos. É uma tarefa difícil saber quanto cobrar, há uma série de consultas, auditorias e ações de coleta.
Caso o clã vencedor cobre impostos abusivos, o clã derrotado encolhe, e caso o clã derrotado tenha mais bens do que aparenta, o clã vencedor estaria tendo prejuízos, nos dois casos o resultado é ruim para o clã vencedor. Na curva de Laffer, à medida que a alíquota aumenta, o valor de receita aumenta, mas a uma taxa cada vez mais lenta que a alíquota, devido ao aumento da evasão e desincentivo de envolver-se na atividade tributada.
Charles Adams usa esta curva para explicar a ascensão e queda de impérios. Governos mais bem-sucedidos foram implicitamente guiados por seus próprios incentivos, já governos que sobrecarregaram seus contribuintes, como a União Soviética e o Império Romano, acabaram desmoronando.
Os reis de Lídia foram os primeiros grandes emissores de moedas que se tem registro, a desculpa para que outros não pudessem cunhar moedas era que somente o governo poderia aplicar medidas de antifalsificação.
A partir daí, era muito mais fácil estimar o valor de uma moeda do que o de um colecionável, especialmente em transações de baixo valor. Muito mais negócios poderiam ser feitos com dinheiro, ao invés de trocas. O que também ajudou na tributação, gerando um aumento na receita tributária geral, tanto que a riqueza destes reis é famosa até hoje.
Disputas e Soluções
Caçadores-coletores ancestrais não possuíam leis criminais, porém já tinham um meio de resolver disputas, muitas vezes julgadas por clãs ou líderes tribais ou votos. A resolução das disputas era através de punições ou sanções de pagamentos pelos clãs das partes em disputa, substituindo ciclos de vingança, sendo o pagamento melhor que o castigo.
O julgamento também deveria coincidir com a capacidade do demandante de pagar pelos danos, bem como a oportunidade e o desejo do réu de se beneficiar deles. Todavia se a solução era um consumível que o demandante já possuía em abundância, a solução provavelmente não satisfaria o réu, e portanto, não restringiria o ciclo de violência.
Atributos dos Itens Colecionáveis
Como humanos evoluíram em tribos pequenas, auto-suficientes e antagônicas, o uso de colecionáveis servia para reduzir a necessidade de lembrar favores devidos. No entanto, a partir que instituições que envolvem transferências de riquezas se tornam valiosas, itens colecionáveis serão fabricados apenas com suas propriedades colecionáveis. Tendo como características, ser transportável e fácil de esconder, mais difícil de forjar seu valor, um valor aproximado com maior precisão por simples observação ou medição.
Por volta de 700 a.C., os reis de Lídia começaram a emitir moedas. Seu valor poderia ser facilmente medido em um mercado, por assalariados ou por coletores de impostos por meio de marca registrada, ou seja, coniança na marca da casa da moeda.
Uma novidade do século 20 foi a questão das moedas fiduciárias dos governos. Significando que seu valor não é garantido por nenhuma mercadoria de reserva, como eram as moedas baseadas em ouro e prata dos séculos anteriores. Embora geralmente excelentes como meios de troca, as moedas fiduciárias provaram ser muito pobres em reservas de valor. A inflação destruiu muitos pecúlios. Não é por acaso que os mercados de objetos raros e obras de arte únicas tiveram um renascimento durante o século passado. Um de nossos mercados de alta tecnologia mais avançados, o EBay, está centrado nesses objetos de qualidades econômicas primordiais. O mercado de colecionáveis está maior do que nunca, mesmo que a fração de nossa riqueza investida neles seja menor do que quando eles eram cruciais para o sucesso evolutivo. Os itens colecionáveis satisfazem nossos impulsos instintivos e permanecem úteis em seu antigo papel de reserva segura de valor.
Conclusão
Muitos tipos de transferência de riqueza, unidirecional e mútua, voluntária e coagida, enfrentam custos de transação. Nos negócios voluntários, ambas as partes ganham; um presente verdadeiramente gratuito é geralmente um ato de altruísmo de parentesco. Essas transações criam valor para uma ou ambas as partes, tanto quanto o ato físico de fazer algo. O tributo beneficia o vencedor e uma sentença de indenização pode impedir mais violência, beneficiando a vítima. A herança fez dos seres humanos os primeiros animais a passar riqueza para seus parentes da próxima geração. Essas heranças, por sua vez, poderiam ser usadas como garantia ou pagamento no comércio de mercadorias, de alimentos para evitar a fome ou de pagar um preço pela noiva. Os itens colecionáveis foram cruciais para possibilitar esse tipo de transação pela primeira vez.
Para ser útil como estoque e transferência de riqueza, um item colecionável precisa ser incorporado em pelo menos uma instituição com um ciclo fechado bem como ter certas propriedades específicas.
As teorias apresentadas neste artigo podem ser testadas ao procurar tais características, ou falta delas, nos “objetos de valor” frequentemente trocados em nossas culturas.
O dinheiro primitivo não era dinheiro moderno como o conhecemos. Ele assumiu parte da função que o dinheiro moderno agora desempenha, mas sua forma era a de herança, jóias e outros itens colecionáveis. O uso deles é tão antigo que os desejos de explorar, coletar, fabricar, exibir, avaliar, armazenar cuidadosamente e comercializar itens colecionáveis são universais humanos e até certo ponto, instintos.
Nota do tradutor
Sete anos após este artigo de Nick Szabo, vemos o nascimento do Bitcoin que fora bastante influenciado por Szabo, alguns até mesmo acreditam que ele é Satoshi Nakamoto.
O bitcoin é uma moeda fácil de ser escondida e transportada, seu valor pode ser facilmente medido entre ambas as partes ao realizar uma transação, pode ser dividido em frações muito pequenas, bem como sua falsificação é impossível devido a transparência e a grande diferença em relação moedas fiduciárias é que o papel da cunhagem foi devolvido a toda e qualquer pessoa. Além disso, hoje podemos fazer transferências para qualquer outro país em questão de minutos, com um custo praticamente nulo.
Em relação a estratégia de guardar riquezas, também nasceu a prática do HODL.
O Bitcoin (com B maiúsculo) é um sistema de dinheiro eletrônico de ponto a ponto, como descrito em seu whitepaper, e o bitcoin (com B minúsculo) é a moeda desse sistema. Tal moeda foi a maior evolução dos últimos tempos em relação ao dinheiro.