Bitcoin e o Surf

Reza a lenda que o diretor da Bitcoin Beach Michael Peterson se mudou semipermanente para El Salvador, por um simples motivo: ele queria um lugar para surfar no inverno. Ele e sua família se mudaram em 2005. O outro criador da Bitcoin Beach é Jorge Valenzuela, um surfista local de 32 anos que já trabalhava em um projeto social. 

Aparentemente não poderia existir dois assuntos mais desconectados do que o Bitcoin e o surf, certo? Um é o dinheiro mágico da internet, criado por nerds para nerds, o outro é o esporte extremamente físico e de intenso contato com a natureza e seus elementos.

Contudo, as aparências enganam e não é a toa que o embrião da adoção do Bitcoin por El Salvador surgiu em um pacato vilarejo de surf. O objetivo deste texto é mostrar que, embaixo da superfície, estes dois mundos são muito mais conectados do que aparentam.

A live recente do Kelly Slater, 11 vezes campeão mundial e conhecido como o Pelé do surf, fez recentemente com Jack Mallers, o CEO da Strike, exemplifica essa conexão.

Prova de Trabalho

Existe uma expressão no mundo do surf que é “surf is free, but you gotta pay”. Ou, em português, “o surf é de graça, mas você tem que pagar”.

Essa frase é utilizada para ilustrar como o acesso ao mar é de graça, mas você paga para surfar com o seu esforço físico e, muitas vezes, com a sua integridade física. É a versão surfística do lema “no pain, no gain”, dos marombeiros, comunidade que também é bastante representada entre os bitcoinheiros.

Um surfista pagando pelo seu livre acesso ao mar
Um surfista pagando pelo seu livre acesso ao mar

Poucas coisas são tão prova-de-trabalho quanto o surf. Mesmo outros esportes não se comparam. Em um dia bom de surf, um surfista provavelmente ficou remando por algumas horas para conseguir ficar alguns poucos minutos de pé em cima da prancha.

Diferente do que ocorre em outros esportes, no surf você está fora do seu ambiente e interagindo com a vida selvagem.

Você consegue imaginar o Neymar indo cobrar um pênalti na final de Champions League e de repente aparecer um leão tentando comer ele? Bom, isso já aconteceu no surf.

Na final de um campeonato da primeira divisão do surf, o tricampeão mundial Mick Fanning foi atacado por um tubarão branco. Eu estava assistindo ao vivo e lembro como se fosse hoje o estado de choque total na comunidade do surf.

Além de enfrentar os elementos e a vida selvagem, o surf também tem outro fator que o diferencia da grande maioria dos esportes: você não tem uma quadra estática para treinar.

O mar muda constantemente devido a variação do vento e das marés, e devido a força e direção das ondulações. Não existem duas ondas iguais, muito menos dois dias com condições iguais. Isso significa que a capacidade de leitura do mar é uma das habilidades mais importantes para um surfista, ele basicamente precisa ser capaz de “prever” o futuro.

No surf, todos estão competindo pelas mesmas ondas. E para ganhar essa competição e conseguir pegar uma onda, você precisa de muito preparo físico e essa capacidade de prever o futuro. Isso porque você precisa estar no lugar certo, na hora certa e antes de todos os outros surfistas que também estão no mar tentando pegar a mesma onda.

A prova-de-trabalho dos surfistas é algo auto-evidente. Basta 5 minutos olhando o mar que fica óbvio quem sabe o que está fazendo e quem não sabe o que está fazendo.

Da mesma forma que o mar, o acesso à educação e ao conhecimento sobre o Bitcoin também é grátis. Existem uma infinidade de conteúdos em inglês e hoje em dia o ecossistema brasileiro já está bem mais maduro do que no passado.

Canais de YouTube como o dos Bitcoinheiros, do Korea, do Eu Uso BTC e do Jaraguá são exemplos disso. Também existe muito conteúdo bom no Instagram, como as meninas do Usecripto, a Madu, o HansInveste ou o Explica Bitcoin, além do podcast 21 milhões. Além, é claro, do Twitter, onde as discussões de alto nível entre os bitcoinheiros realmente ocorrem.

Hoje, qualquer pessoa com interesse consegue aprender sobre o Bitcoin. Entretanto, mesmo sendo grátis, aprender sobre o Bitcoin não é simples e você tem que pagar com seu tempo e seu esforço.

Bethany Hamilton, surfista e bitcoinheira, perdeu um braço em um ataque de tubarão na infância e continuou surfando profissionalmente. Um ótimo exemplo de prova-de-trabalho.
Bethany Hamilton, surfista e bitcoinheira, perdeu um braço em um ataque de tubarão na infância e continuou surfando profissionalmente. Um ótimo exemplo de prova-de-trabalho.

O mecanismo de prova-de-trabalho é o pilar central do protocolo do Bitcoin. Ele está no cerne da diferença entre o Bitcoin e outras altcoins baseadas na prova-de-participação: A prova-de-trabalho é inerentemente justa, pois ela troca diretamente energia por poder computacional (e você não consegue trapacear no uso da energia). Enquanto isso, a prova-de-participação é um sistema baseado em “quem tem mais, manda mais”.

Essa prova-de-trabalho também é percebida quando você conversa sobre o Bitcoin com alguém. É auto-evidente pela compreensão da pessoa sobre este tema complexo a quantidade de trabalho que ela realizou.

O Bitcoin seleciona as pessoas que entendem o valor do trabalho e que se dedicam a ele. Os críticos nunca têm argumentos decentes porque eles nunca estudaram mais do que algumas poucas horas.

Eles não possuem prova-de-trabalho, e por isso os seus argumentos são tão rasos. Para começar a entender realmente sobre o Bitcoin é necessário algumas dezenas ou mesmo centenas de horas de estudo.

Igualdade e Humildade

Somos todos iguais perante uma onda. Laird Hamilton, surfista de ondas gigantes, inventor do town in, do stand up e do foiling, e pai da Bethany Hamilton.

Laird Hamilton ensinando ao mundo que era possível surfar Teahupoo em <a href="https://www.youtube.com/watch?v=pYQQtxb8wv0">dias gigantes</a>, na onda que é considerada por muitos a onda mais importante ja surfada, por ter redefinido todas as fronteiras do possível no surf.
Laird Hamilton ensinando ao mundo que era possível surfar Teahupoo em dias gigantes, na onda que é considerada por muitos a onda mais importante ja surfada, por ter redefinido todas as fronteiras do possível no surf.

Não importa sua cor, sua religião ou seu sexo, no surf pega a onda quem estiver no lugar certo, na hora certa e antes de outro surfista. Um surfista sempre tem um grande respeito pelo mar e sabe que a natureza é mais forte que ele. O mar ensina humildade melhor do que qualquer livro de alto ajuda, pois a cada erro você é punido e paga levando um caldo.

O Bitcoin também é uma rede sem capacidade de discriminação e todos os usuários são iguais perante o protocolo. Não importa se você tenha apenas alguns satoshis ou vários bitcoins, os seus direitos são exatamente os mesmos. Não existe um “Bitcoin Personalité” para os bitcoinheiros mais abastados, com condições especiais, gerentes exclusivos e juros menores.

Ser um bitcoinheiro também é um atestado de humildade. Não existe praticamente ninguém que entendeu o Bitcoin de primeira. Geralmente, um bitcoinheiro já havia escutado a respeito do Bitcoin algumas vezes e o rejeitou.

A capacidade de engolir o ego e assumir um erro é algo raro no ser humano, e por isso tanta gente inteligente reluta em assumir que estava errada em relação ao Bitcoin. É mais fácil se esconder em argumentos tolos como “se ele é divisível ele não é escasso” ou “são tulipas modernas”, como os faria limers costumam fazer.

Liberdade

Talvez a maior conexão entre essas tribos aparentemente tão distintas seja o amor pela liberdade. O surfista geralmente é aquele bicho-grilo que nunca se submeteu ao sistema e segue usando roupas de surf e havainas.

Ele sempre é considerado vagabundo e maconheiro, alguém sem futuro e com quem você não deveria se relacionar. O sentimento de busca por liberdade sempre levou os surfistas a explorarem o novo e desconhecido.

O sonho de todo surfista é fazer uma surftrip (viagem dedicada exclusivamente a surfar) e descobrir ondas novas e vazias. Hoje em dia isso é mais difícil, mas por décadas foi esse sentimento que impulsionou gerações de surfistas a explorar e descobrir novos lugares.

El Zonte provavelmente compartilha essa história com milhares de outras localidades espalhadas pelo mundo. Não é exagero afirmar que se não fossem os surfistas, os litorais do mundo seriam bem menos explorados. Diversas vilas de pescadores não teriam se desenvolvido para receber a comunidade de bichos-grilos que veio de fora em busca de altas ondas.

Cartaz de uma série de filmes que habita a mente de qualquer surfista, The Endless Summer e The Endless Summer II, onde surfistas viajam o mundo em busca da onda perfeita.
Cartaz de uma série de filmes que habita a mente de qualquer surfista, The Endless Summer e The Endless Summer II, onde surfistas viajam o mundo em busca da onda perfeita.

Os bitcoinheiros também valorizam a liberdade acima de tudo. Em 2017-2018, o Bitcoin passou por uma “guerra cívil” em nome da liberdade, ou seja, em nome de manter a rede descentralizada.

Esse evento é conhecido como Block Size Wars (Guerra do Tamanho dos Blocos), quando as maiores empresas e mineradores tentaram forçar uma mudança que centralizaria a rede.

Foi graças aos plebeus bitcoinheiros e o seu amor pela liberdade e pela descentralização que esta mudança foi impedida. O amor pela liberdade é um dos princípios básicos dos bitcoinheiros plebeus, e os fizeram enfrentarem as grandes instituições que estavam atacando os seus princípios.

Foi graças a esse amor pela liberdade que eles se mantiveram firme e por fim saíram vencedores na guerra civil.

Em um pensamento mais amplo, os bitcoinheiros entenderam que só existe uma forma real de liberdade: a liberdade econômica. Sem ela, todos estamos presos em uma “escravidão” por dívida com nosso eu do futuro. E um dinheiro deflacionário como o bitcoin conserta isso.

A Tribo

Tanto os surfistas como os bitcoinheiros possuem um forte senso de tribo e pertencimento, baseado em uma série de valores e crenças compartilhadas entre si. Essas duas tribos se sentem deslocadas no mundo “normal”, mas quando encontram outro membro da sua tribo a conexão tende a ser imediata.

Esse sentimento talvez seja mais comum entre os surfistas, visto que eles não possuem como valor importante a privacidade. É extremamente fácil reconhecer um surfista na multidão. Ele provavelmente estará bronzeado, com a barba por fazer, cabelo desgrenhado e possivelmente os olhos vermelhos devido ao sal da água do mar.

O ritual de círculo no mar é uma forma comuns para homenagear um surfista falecido, a nossa espécie de missa de sétimo dia.
O ritual de círculo no mar é uma forma comuns para homenagear um surfista falecido, a nossa espécie de missa de sétimo dia.

Para os bitcoinheiros, esse sentimento é mais raro. Contudo, todos que já participaram de alguma conferência ou encontro sabe do que estou falando.

Eu vivenciei isso plenamente na minha estadia em El Salvador para a conferência Adopting Bitcoin e espero que todos vocês tenham a chance de vivenciar o mesmo. É maravilhoso poder conversar livremente com pessoas que entendem os conceitos básicos e que também possuem uma grande paixão com o ethos dos bitcoinheiros.

Contracultura

O mundo não precisa de mais conformistas. Se você não se encaixa, comemore isso e, em seguida, prepare-se para defender sua posição.” Laird Hamilton

Essa conexão instantânea e senso de tribo existem de maneira tão forte nessas duas comunidades porque ambas sempre foram rejeitadas pela comunidade dos “normais”.

O surfista sempre foi considerado o maconheiro sem futuro, alguém que se preocupava mais com a liberdade do que com bens materiais, pecado gravíssimo na sociedade fiat. Hoje em dia, o surf está mais popularizado devido ao fenômeno “Brazilian Storm” (Tempestade Brasileira), que já trouxe 5 títulos mundiais desde 2014 (3x Gabriel Medina, 1x Adriano “Mineirinho” de Souza, 1x Ítalo Ferreira).

Exemplo da contracultura dos surfista dos anos 70s.
Exemplo da contracultura dos surfista dos anos 70s.

Bitcoin continua sendo um movimento de contracultura, rejeitado pela grande maioria das pessoas. Esse sentimento de “nós contra o mundo” é algo que ajuda a unir essas duas tribos. E ambas possuem grandes provas-de-trabalho que justificam essas crenças e valores, os fazendo rejeitar a cultura normie. Essas duas tribos estão em busca de relações verdadeiras com pessoas com mentalidade próximas e não se satisfazem com menos que isso.

Bitcoin Beach

Vim para El Salvador em uma surtrip e me apaixonei. A água está quente, as ondas são ótimas, as pessoas são super amigáveis. Então, minha esposa e eu decidimos comprar uma casa e nos mudar para lá – isso foi há 14 anos.” Michael Peterson.

Reza a lenda que o diretor da Bitcoin Beach Michael Peterson se mudou semipermanente para El Salvador, por um simples motivo: ele queria um lugar para surfar no inverno. Ele e sua família se mudaram em 2005. O outro criador da Bitcoin Beach é Jorge Valenzuela, um surfista local de 32 anos que já trabalhava em um projeto social.

Em fevereiro deste ano, o surfista Jack Mallers passou uma temporada em El Zonte. Após as sessões matinais, ele e sua equipe desenvolveram o Strike, um app integrado a rede Lightning. Alguns meses depois, este surfista estava conversando com o presidente de El Salvador.

Concluindo

Enfim, não é a toa que El Zonte, uma praia com altas ondas e frequentada por diversos surfistas, foi o local escolhido por um doador anônimo para iniciar o projeto da Bitcoin Beach com a doação de algumas moedas.

Muito provavelmente este anônimo era um dos vários bitcoinheiros surfistas amantes de liberdade que entendem profundamente a conexão entre esses dois mundos e sabem como o Bitcoin pode ajudar as comunidades carentes – afinal, muitas das melhores ondas do mundo quebram em localidades pobres como El Salvador.

Um processo natural que aconteceu e continua a acontecer em todo mundo é: surfistas vão explorar uma região por conta das ondas → eles se fixam em lugares bonitos, pobres e com ondas boas, geralmente vilarejos de pescadores → essas comunidades se desenvolvem atráves do turismo e do capital de fora que os surfistas fomentam.

Existem infinitos exemplos disso, mas se atendo ao Brasil poderíamos citar Maresias, Saquarema, Itacaré. Em El Zonte, essa conexão gerou o embrião para o primeiro país adotar o Bitcoin como moeda oficial.

Aloha
Aloha

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Caio Leta
Caio Letahttps://bipa.app/
Caio Leta, PhD em Geologia, deixou a academia para se dedicar ao Bitcoin. Leta é o criador do projeto de educação Explica Bitcoin e autor do livro "O Mundo Mágico do Bitcoin". Trabalhou com pesquisa na Arthur Mining e atualmente atua como head de Pesquisa e Conteúdo na Bipa, uma plataforma digital de vanguarda que integra Bitcoin, USDT e Real, proporcionando uma experiência financeira unificada.

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