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Bancos, cripto e infraestrutura: o que os Estados Unidos já aceitaram e o que o Brasil ainda observa

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Durante muito tempo, a discussão sobre criptomoedas ficou presa a uma pergunta simples: isso é investimento ou tecnologia? O que vem acontecendo nos Estados Unidos mostra que essa pergunta já não explica bem a realidade. Para o regulador bancário americano, cripto passou a ser tratado como infraestrutura financeira, algo que não precisa ser defendido nem combatido, apenas operado de forma segura.

Essa mudança não veio por meio de uma grande lei nova ou de um marco regulatório específico para criptomoedas. Ela ocorreu a partir da aplicação de normas bancárias tradicionais a uma tecnologia nova. O Office of the Comptroller of the Currency, órgão responsável pela supervisão dos bancos nacionais nos Estados Unidos, passou a enquadrar atividades com cripto no conceito de atividade bancária previsto no 12 U.S.C. § 24(Seventh), dispositivo central do National Bank Act. Esse artigo estabelece que bancos podem exercer o negócio bancário e todos os poderes incidentais necessários para conduzi-lo, desde que com gestão de risco e supervisão.

Com base nesse entendimento, o regulador passou a esclarecer como atividades já conhecidas do sistema financeiro podem ser realizadas utilizando blockchain. Essas explicações vieram por meio de Interpretive Letters, que não criam leis novas, mas indicam como o regulador interpreta a legislação existente. Desde a Interpretive Letter nº 1170, de 2020, o OCC reconhece que bancos podem prestar serviços de custódia de criptoativos, incluindo funções associadas como liquidação, execução de ordens e registro. Em 2025, a Interpretive Letter nº 1184 reforçou que bancos podem comprar e vender ativos mantidos em custódia a pedido de clientes, inclusive criptoativos, e terceirizar partes dessas atividades, desde que observadas práticas adequadas de gestão de risco.

Outro esclarecimento relevante veio com a Interpretive Letter nº 1188, de dezembro de 2025, quando o regulador confirmou que bancos podem realizar operações de riskless principal com criptoativos. Trata-se de uma estrutura tradicional do mercado financeiro, na qual o banco compra um ativo de uma contraparte e o revende quase imediatamente a outra, com ordens casadas, sem assumir risco relevante de preço. O OCC deixou claro que o fato de o ativo ser digital não altera a natureza da operação. Se o banco não mantém posição direcional, ele não está investindo ou especulando.

Um ponto particularmente sensível foi tratado na Interpretive Letter nº 1186, de novembro de 2025. Nela, o regulador reconheceu que bancos podem manter quantidades mínimas de criptoativos no próprio balanço exclusivamente para fins operacionais. Isso inclui o pagamento de taxas de rede, conhecidas como gas fees, a liquidação de transações, testes de sistemas e o cumprimento de obrigações técnicas inevitáveis ao operar em blockchains públicas. O regulador foi explícito ao afirmar que essa autorização não se confunde com permissão para investimento ou especulação e que os valores devem ser mantidos em nível de minimis (montante mínimo, sem exposição econômica relevante / sem caráter de investimento), com controles de risco, liquidez e conformidade.

Esse entendimento parte de uma constatação simples. Em redes públicas como o Ethereum, nenhuma transação ocorre sem o pagamento da taxa de rede, que só pode ser quitada na moeda nativa do sistema. Negar essa possibilidade equivaleria, na prática, a impedir bancos de operar essa infraestrutura. Trata-se de custo operacional, não de tese de investimento.

Esse modelo não representa uma ruptura no papel dos bancos. Em outros mercados, a lógica é semelhante. Um exemplo clássico é o ouro. Em ETFs lastreados em ouro, bancos atuam como intermediários, comprando o metal físico, transferindo-o a um custodiante e recebendo cotas que são repassadas aos investidores. O ouro passa pelo banco, mas não permanece como posição econômica relevante. O risco de preço é do investidor, não da instituição financeira. O regulador americano aplicou esse mesmo raciocínio ao cripto, alterando o meio, não a função.

Quando se observa o cenário brasileiro, o contraste é evidente. O país instituiu um marco legal específico para o setor por meio da Lei nº 14.478, de 2022, que definiu os prestadores de serviços de ativos virtuais e atribuiu ao Banco Central do Brasil a competência regulatória sobre essas atividades, ressalvadas as atribuições da Comissão de Valores Mobiliários nos casos em que os criptoativos se enquadram como valores mobiliários. A lei trouxe segurança jurídica importante para corretoras e demais prestadores de serviços, mas não tratou de forma explícita da atuação direta de bancos com criptoativos em blockchains públicas.

Na prática, instituições financeiras brasileiras oferecem exposição a cripto por meio de fundos, ETFs e produtos estruturados, realizam parcerias com exchanges e participam de iniciativas como tokenização e o Drex. O que ainda não fazem é custodiar cripto diretamente, operar liquidações em blockchains públicas, pagar gas fees ou manter cripto no balanço, mesmo quando isso teria finalidade estritamente operacional. Não há uma vedação expressa, mas a ausência de autorização clara leva à inação.

É nesse ponto que a diferença entre os modelos pode ser resumida de forma simples. Nos Estados Unidos, os bancos foram autorizados a operar essa infraestrutura com regras claras, limites quantitativos e fiscalização contínua. Eles podem seguir em frente, desde que respeitem a velocidade máxima e as condições impostas pelo regulador. No Brasil, os bancos reconhecem que essa infraestrutura existe, mas permanecem no acostamento, observando o movimento e oferecendo produtos indiretos, enquanto outros agentes fazem a operação direta.

Cada abordagem tem vantagens e riscos. O modelo americano permite aprendizado operacional real e traz essas atividades para dentro do perímetro regulado, mas exige que bancos lidem com riscos tecnológicos novos. O modelo brasileiro reduz a exposição direta do sistema bancário a esses riscos, mas também limita o desenvolvimento de capacidade operacional e transfere a inovação para fora do setor bancário tradicional.

O que o Brasil pode aprender com a experiência americana não é a liberação irrestrita, mas a importância da clareza regulatória. Reconhecer formalmente que certas atividades com cripto são operacionais, e não especulativas, permitiria trazer essas funções para dentro do sistema supervisionado. Autorizar custódia, liquidação e pagamento de taxas de rede sob condições estritas não transforma bancos em investidores em cripto. Apenas permite que operem uma infraestrutura que já está em uso.

No curto prazo, a tendência é que os Estados Unidos aprofundem a integração entre bancos, stablecoins e blockchain, enquanto o Brasil avance de forma gradual, com ajustes pontuais e maior detalhamento regulatório. Cripto não está se tornando o novo ativo de aposta dos bancos. Está se tornando infraestrutura financeira. E, como acontece em qualquer sistema, quem aprende a operá-la tende a influenciar o ritmo das mudanças que vêm depois.

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Ralph

Cybersecurity Specialist | Ethical Hacker | Blockchain Investigator Profissional sênior em cibersegurança com sólida experiência em proteção de ativos digitais, investigação de blockchain e práticas avançadas de anonimato. Atua como consultor estratégico, educador e palestrante, com foco em mitigação de riscos pessoais e corporativos, segurança no ecossistema Bitcoin e prevenção de ameaças digitais.

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