Um argumento comum contra as criptomoedas é o seu caráter anônimo. O uso da criptografia permite que a propriedade de um ativo digital seja transferida, supostamente sem deixar rastro da identidade dos envolvidos.
“A principal característica de cripto moedas é seu anonimato. Não acho que seja algo positivo. É bom que um governo seja capaz de identificar lavagem de dinheiro, evasão fiscal e o financiamento do terrorismo”, Bill Gates.
Privacidade ou anonimato, o fato é que todo cidadão de bem apoia a luta contra o crime organizado, a evasão de divisas, o narco-terrorismo, entre outras modalidades hediondas. Porém, a opinião de que as cripto-moedas promovem atividades criminosas não é monolítica.
Existem muitos exemplos onde avanços tecnológicos, quando mal utilizados acabam sendo prejudiciais, causando inclusive um número relevante de óbitos. Segundo a OMS o número de vítimas fatais no trânsito totalizou mais de 1,3 milhões de pessoas em 2018 (relatório completo da OMS). Assaltantes e traficantes são famosos por usarem carros, e até caminhões blindados em fugas espetaculares. Também é verdade que o trânsito estressa e promove o sedentarismo.
Qual seria a solução? Banir o uso do automóvel? Ou, criar leis com o objetivo de reduzir acidentes? Qual é a responsabilidade do Estado em fazer cumprir a lei? O consenso numa sociedade democrática tem demonstrado que o mal uso, por uma minoria, não invalida o benefício comum da maioria.
“É assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional.” Art 5º da CF.
Além do mais, proibir a utilização de um avanço tecnológico também já demonstrou ser ineficaz. Isso porque vivemos numa sociedade organizada em torno dos direitos individuais, onde a privacidade e a liberdade de expressão são fundamentais. A Constituição Federal deixa isso claro quando menciona as prerrogativas profissionais do jornalista.
Mas como assim?
Alguns usam o argumento legítimo, diga-se de passagem, de que pessoas estão morrendo por causa do exercício desses direitos. E afinal, “(…) quem não deve, não teme”, diz o ditado.
Já se passaram 80 anos desde a ameaça nazista, a expansão do fascismo, e desde os horrores do holocausto. No decorrer de quatro gerações passamos a acreditar que o mundo livre no qual vivemos é o único que existe. No entanto, o jogo entre democracia e autoritarismo ainda está empatado.
“Em 2018, estima-se que mais de 4 bilhões de pessoas vivem sob regimes autoritários” Freedom House
Reconhecer que vivemos num estado permanente de conflito merece reflexão. Ainda mais quando pensamos que as batalhas de hoje, muitas vezes são travadas nos campos da propriedade intelectual, da espionagem cibernética ou do terrorismo ecológico. Essas práticas “invisíveis” ao cidadão comum podem ser tão destrutivas quanto bombas e armas químicas.
O que o uso de criptomoedas tem haver com isso?
Em lugares onde os únicos meios de manter o poder tirano em cheque são a imprensa e as organizações de apoio humanitário, a tecnologia serve como armamento tático para ajudar a população. O uso de mensagens criptografadas, as redes virtuais privadas (VPNs) e iniciativas open-source, como o projeto Tor, têm funcionado como fatores de liberação.
Do outro lado também testemunhamos a crescente influência das redes sociais, da mídia online e dos serviços de pagamentos centralizados. Na China, a última “inovação” no quesito controle estatal é o novo sistema de crédito social que entra em vigor agora, em 2020. Lá, cidadão mal comportado não vai mais viajar de avião, não vai ter internet banda larga, e vai perder acesso à educação.
É preciso admitir que muitas novidades tecnológicas têm se tornando instrumentos de vigilância, controle e re-engenharia social. Num cenário orwelliano, as cripto-moedas também funcionam como parte do arsenal na luta contra o autoritarismo e a repressão.
Vejamos o que vem acontecendo no nosso país vizinho, atualmente conhecido como a Venezuela de Maduro. A população tem usado a rede Bitcoin para manter a economia funcionando. Noticias de transações recorde e até de uma inflação dita de 10.000.000% continuam fazendo circulando. Ali, nem Bill Gates poderia discordar que bitcoin vem salvando vidas.
Crédito: Matt Ahlborg
Privacidade ou anonimato passa a ser uma questão de liberdade econômica e social. Os incidentes e abusos praticados nesses regimes só repercutem na mídia internacional graças à pessoas corajosas. Quem denuncia pode acabar sendo identificado, colocando em perigo a sua integridade física e a de seus familiares.
Portanto, privacidade no uso de bitcoins e outras cripto-moedas merece um exame mais amplo por parte das autoridades. Até mesmo o legislador responsável por criar a leis para a nova cripto-economia precisa conhecer o funcionamento desses recursos tecnológicos.
O primeiro conceito necessário para entender como e porque as cripto-moedas permitem o anonimato é a chave criptográfica. Saiba mais, visite estes links.
O par de chaves pública e privada permite a transferência de valores ao redor do mundo. A assinatura digital permite um certo grau de segurança de não estar sendo monitorado. Mas esse avanço tecnológico não se limita às transações financeiras. Um ótimo exemplo onde essa tecnologia poderia fazer a diferença é na República dos Camarões.
A república africana vive uma democracia na qual o presidente vem sendo re-eleito pelos últimos 36 anos. Muitos acreditam que essa “democracia” poderia se beneficiar de um sistema de votação implementado numa rede blockchain. Se a eleição fosse realizada usando um token criptográfico, será que o presidente continuaria a ser tão popular? Será que ele apoiaria tal iniciativa em nome da transparência e dos princípios democráticos?
Esse é outro claro exemplo onde oponentes políticos, assim como também a população encontram nas cripto-moedas uma forma de resguardar suas atividades dos olhos vigilantes do atual regime. Não é à toa que o uso de Bitcoin vem aumentando justamente em países onde a população sofre o cerceamento das liberdades civis. As mesmas liberdades que para o mundo ocidental são parte comum do cotidiano.
No entanto, seria uma ingenuidade dizer que operar em bitcoins é totalmente anônimo, seja para o criminoso internacional, seja para o ativista político. Isso por que o anonimato online não é algo tão simples assim.
Quando se fala em Bitcoin, manter-se invisível significa para o usuário “rodar” um programa específico, o bitcoin core. Depois ele precisa configurar o que se chama de “full node”, de preferência, estabelecendo uma conexão segura através de uma VPN, que por sua vez roda num sistema Linux, ou outro sistema operacional open-source. Além disso, seria necessário proteger toda comunicação e transferência de arquivos com as ferramentas criptográficas, como GPG4win.
Isso tudo na teoria, pois já se sabe que sistemas operacionais tradicionais, como windows ou MacOS inclusive Linux, deixaram a famosa “porta dos fundos” para que autoridades pudesse agir sem a ciência do usuário.
Mas toda essa parafernália tecnológica seria inútil se o usuário não proteger a atividade online fora das redes blockchain. Ou seja, se uma conta bancária foi vinculada a uma corretora para a aquisição de bitcoins, por exemplo, “game over”. Aquela identidade foi revelada para o mundo.
O ativista político, ou jornalista em terras hostis sabe que todos os seus passos estão sendo monitorados. Seja através do seu endereço IP, seu cartão de crédito, ou pelo chip do seu passaporte. Se a polícia federal e a Interpol usam essa trilha de pegadas eletrônica, por que hackers e governos totalitários não estariam usando os mesmos métodos?
Portanto, quando se trata de transações usando a rede Bitcoin, o sigilo ou o anonimato dependem da sofisticação técnica do usuário e da capacidade do adversário que deseja a identificação. E o mais desafiante é que nesta arena cibernética o contexto tecnológico muda o tempo todo. A solução de hoje pode ser violada amanhã, assim como a imposição de censura pode ser comprometida em questão de horas.
Para que a tecnologia emergente possa ser um veículo de justiça social, liberação e progresso é necessário estabelecer uma discussão entre a sociedade e o legislativo. A tecnologia blockchain e os cripto-ativos precisam de um ordenamento jurídico adequado, o quanto antes. Apenas através do cumprimento das leis é que poderemos senão eliminar, pelo menos reduzir as ameaças e os crimes que fazem do mundo há séculos.