Como os pareceres técnicos da CVM são utilizados judicialmente no contexto das pirâmides financeiras

A crescente sofisticação das operações financeiras, especialmente no campo dos criptoativos, exige uma abordagem funcional, como adotado pela CVM, para identificar e punir práticas ilícitas que envolvam valores mobiliários.

A Comissão de Valores Mobiliários não tem competência para atuar em processos que versem sobre ilícitos criminais e cíveis, exceto da qualidade de amicus curiae, na forma no disposto na redação do artigo 31, da Lei nº 6.385/1976, bem como para atuar em conjunto com o Ministério Público Federal em razão da existência de termo de cooperação técnica[1] entre as entidades desde 8/5/2008.

Por força dessa limitação legal, a atuação da CVM é restrita aos ilícitos administrativos, que geralmente são:

  • (i) a realização de oferta pública de valores mobiliários sem o registro ou a dispensa de registro perante a CVM (infração ao art. 19, caput, e §5º, inciso I, da Lei n.º 6.385/1976 e ao art. 4º da Resolução CVM n.º 160/2022);
  • (ii) operação fraudulenta (infração ao art. 2º, inciso III, da Resolução CVM n.º 62/2022); e
  • (iii) exercício de atividade regulada sem a obtenção do registro exigido para a sua prática perante a CVM (como, por exemplo, no caso da atividade de administração de carteira de valores mobiliários, infração ao art. 2º da Resolução CVM n.º 21/2021).

Apesar disso, é notável que os pareceres técnicos e os processos administrativos da Autarquia têm sido frequentemente empregados para auxiliar o entendimento do Poder Judiciário, especialmente no que tange à aplicação do Teste de Howey, o que, como consequência lógica, pode configurar a prática dos crimes previstos na Lei n.º 6.385/1976 e na Lei n.º 7.492/1986, bem como do delito previsto na redação do artigo 2º, inciso IX, da Lei nº 1.521/1951, qual seja, o crime contra a economia popular de pirâmide financeira.

Teste de Howey

A aplicação de Howey é tão atual que o Teste foi expressamente citado e aplicado nas sentenças criminais condenatórias proferidas nos casos de grande repercussão como, por exemplo, Braiscompany e Rentalcoins, bem como em pareceres do Ministério Público Federal e indiciamentos policiais.

O Teste de Howey tem sua origem em um caso da Suprema Corte dos Estados Unidos julgado em 1946 (SEC v. W.J. Howey Co.), que posteriormente tornou-se um marco fundamental no direito dos valores mobiliários e na regulamentação do mercado de capitais não apenas dos EUA, mas também do Brasil e de outros países.

O Direito brasileiro, por sua vez, incorporou o conceito de security (valor mobiliário) do Direito norte-americano e a CVM, em suas próprias palavras criou um “Howey Tropical”, abandonando “uma concepção fechada de valor mobiliário, para a adoção de uma concepção funcional-instrumental do que seria valor mobiliário, acabando por alargar sobremaneira sua definição, bem como a competência da CVM.”

Trata-se de um mecanismo tão caro para a CVM, que o entendimento da Autarquia é o de que “a caracterização de determinado produto como um contrato de investimento coletivo não depende de prévia manifestação da CVM, mas da sua subsunção aos requisitos do chamado Howey Test[2].”

Seguindo o entendimento e o “roteiro” norte-americano, a CVM verifica a existência de cinco características, quais sejam:

  • (1) a existência de investimento, ou seja, de um aporte em dinheiro ou bem suscetível de avaliação econômica;
  • (2) a formalização dessa relação jurídica mediante título ou contrato;
  • (3) a existência de caráter coletivo do investimento;
  • (4) a expectativa de benefício econômico, seja por parceria, participação ou remuneração;
  • (5) o esforço do empreendedor ou de terceiro, de forma que o benefício econômico resulte da atuação de um terceiro que não seja o investidor; e
  • (6) a existência oferta pública marcada pela captação de recursos em amplo sentido.

A incorportação do Teste de Howey somente foi possível porque o inciso IX, do art. 2º, da Lei n.º 6.385/76 estabeleceu um conceito aberto.

Fato é que diversos conceitos relevantes para a regulação do mercado de capitais foram propositalmente redigidos de maneira aberta para que o arcabouço regulatório se ajuste com mais facilidade às novas tecnologias, tal como está ocorrendo atualmente com os ativos digitais e a tecnologia blockchain.  Vejamos:

Art. 2º São valores mobiliários sujeitos ao regime desta Lei:

(…) 

IX – quando ofertados publicamente, quaisquer outros títulos ou contratos de investimento coletivo, que gerem direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advêm do esforço do empreendedor ou de terceiros.

Apesar disso, a CVM debateu se o Teste de Howey seria aplicável aos ativos digitais, uma tecnologia que ainda não existia quando os diplomas legais e regulamentares que cuidam da matéria foram editados, afinal a norma podia ser obsoleta (ou inaplicável) em face do surgimento de uma tecnologia cujos pilares estão alicerçados na descentralização.

A conclusão (que, pela realidade lógica era a única possível) foi de que o conceito de contrato de investimento coletivo pode abarcar negócios diversos em múltiplos setores, motivo pelo qual a CVM aplica o Teste de Howey para atrair sua competência não apenas em se tratando de ativos digitais, mas para múltiplos casos, como, por exemplo, criação de avestruz (PAS CVM n.º 23/04), participação em direitos de jogadores de futebol (PA CVM n.º RJ 2014/11253), empreendimentos condo-hoteleiros (PA CVM n.º 19957.004122/2015-99), investimento em frações de tempo em empreendimento imobiliário estruturado sob o modelo de multipropriedade ou time sharing (PA CVM n.º 19957.009524/2017-41), investimentos em vagas de garagem (PA CVM n.º 19957.006343/2017-63), dentre outros.

Diante disso, é evidente que a correta aplicação do Teste de Howey pelo Poder Judiciário e pelos órgãos de fiscalização é essencial para a proteção dos investidores e a integridade do mercado de capitais.

A crescente sofisticação das operações financeiras, especialmente no campo dos criptoativos, exige uma abordagem funcional, como adotado pela CVM, para identificar e punir práticas ilícitas que envolvam valores mobiliários.

Além disso, a colaboração entre a CVM e o Ministério Público Federal, bem como o crescente uso de pareceres técnicos da Autarquia para subsidiar decisões judiciais, demonstra a relevância de um esforço coordenado para a regulação eficaz desse mercado em constante evolução.

Nesse cenário, o papel da CVM, embora limitado aos ilícitos administrativos, segue sendo crucial na prevenção de fraudes e abusos, enquanto o Judiciário, ao aplicar corretamente os critérios do Teste de Howey, pode contribuir para responsabilizar criminalmente os envolvidos em esquemas que prejudiquem a economia popular, como as pirâmides financeiras, protegendo, assim, o sistema financeiro nacional.

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[1] A atuação da CVM no contexto das “pirâmides financeiras” também se estende para a colaboração com outras entidades. Nesse sentido, cabe destacar que a CVM também possui Acordo de Cooperação com a Senacon (Secretaria Nacional do Consumidor) e propôs a Ação n.º 8/20226 da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (ENCCLA) em conjunto com a Polícia Federal. Ademais, a CVM, tal como estabelecido pelo art. 9º, da Lei Complementar n.º105/2001, frequentemente informa eventuais crimes que cheguem ao seu conhecimento ao órgão ministerial e à autoridade policial competente.

[2] PAS CVM no 19957.006343/2017-63, j. em 07.05.2019, voto vencedor Dir. Gustavo Gonzalez

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Pedro Torres
Pedro Torreshttps://sydowtorres.adv.br/
Pedro Torres é advogado especializado em Blockchain e Criptoativos. Mestre em Blockchain e Moedas Digitais pela Universidade de Nicósia (Chipre), ele atua como Investigador Forense de Criptoativos, certificado pelo McAfee Institute (EUA) e pela Chainalysis (EUA). Sua expertise abrange o Direito dos Criptoativos e Blockchain, com especialização pela Escola da Magistratura Federal do Paraná (ESMAFE) e pela Escola da Magistratura Estadual do Paraná (EMAP). Além disso, é Conselheiro do Conselho de Ativos Digitais e Blockchain da Associação Comercial do Paraná e membro de organizações de destaque como a Crypto Valley Association (Suíça) e o Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. Pedro também integra a Comissão Especial de Inovação e Tecnologia da OAB/SP, refletindo seu papel ativo na inovação jurídica.

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