Fazer transações sem precisar de qualquer intermediário por meio de uma rede descentralizada. Esse foi o espírito que moveu o surgimento do Bitcoin com a publicação do White Paper de Satoshi Nakamoto em 31 de outubro de 2008.
A partir daí veio a criação de uma série de ativos criados no ambiente digital sob uma proteção criptográfica que tem constantemente desafiado o Direito.
Não se trata de um criptoativo apenas, mas de uma real revolução disruptiva. O Bitcoin deu ensejo à Finança Descentralizada (Decentralized Finance — DEFI) e serviu de modelo para os bancos centrais criarem suas Moedas digitais (Central Bank Digital Currencies — CBDC) à exemplo do DREX no Brasil.
Diferentemente de qualquer outra coisa, o Bitcoin é em sua essência um ativo multifacetado. Podendo ser usado em transações comerciais como se moeda fosse e até servindo de lastro para investimentos indiretos. Poderia-se, então, colocar o Bitcoin numa gaveta de Commodities dotadas de uma certa Reserva de Valor.
Na visão da doutora em Direito Público e Professora Aposentada da Universidade Federal Fluminense (UFF) Marcia Bataglin Dalcastel seria uma tecnologia precificada. Mas qual seria o preço? Para ela, se trataria de um bem digital que teria seu preço ditado pelo próprio mercado.
Já o Professor em Direito das relações internacionais da Universidade Federal Fluminense (UFF) e Coordenador do programa de doutorado da Estácio de Sá, doutor Eduardo Manuel Val afirma que o Bitcoin assim como outra commodity tem seu valor empregado no interesse de outras pessoas em efetuar a troca. Se há esse interesse, se tem o meio de troca, com isso surge a valorização e se tem a Reserva de Valor. Mas para entendermos tudo isso, vale trazer um breve resumo sobre como surgiu o Bitcoin.
Bitcoin: a origem
O cenário em torno do Bitcoin é complexo. A começar pelo próprio Satoshi Nakamoto, o qual tem sua identidade não revelada podendo inclusive não ser apenas uma pessoa mas um corpo de pesquisadores. Apesar de o White Paper “Bitcoin: A Peer-to-Peer Electronic Cash System” ter sido publicado em 31 de outubro de 2008, a ideia por trás do Bitcoin vem desde a década de 1980.
O cientista da computação David Chaum propôs em 1982 o “E-Cash”. Foi por meio desse projeto que surgiu o conceito de “moeda criptografada”. Essa inovação acabou sendo usada como um arranjo de pagamento, a qual serviu sustentou os fundamentos da moeda eletrônica “DigiCash”. Esse termo “moeda eletrônica” não deve ser confundido com o que se tem atualmente com criptoativos como o Bitcoin ou Ether.
Em 1998, o cientista da computação chinês Wei Dai criou o B-Money trazendo a possibilidade de se ter uma moeda descentralizada. Sob esse panorama, vale o que o mestre em Economia Armando Martins e o professor de Direito Eduardo Manuel Val trazem em seu artigo “Criptomoedas: Notas sobre seu funcionamento e perspectivas institucionais no Brasil e Mercosul”:
“A noção do bitcoin e das criptomoedas mais usadas hoje se dá por base de uma ‘moeda’ sem lastro (isto é, sem nenhuma garantia de substituição ou equivalência em alguma commodity, como o ouro ou a prata), nem com nenhuma instituição central que supervisione, garanta ou elabore políticas monetárias.
Este modelo de moeda acaba por desafiar o conceito de tudo que se convenciona atualmente nos sistemas monetários, enquanto um sistema centralizado gerado de cima para baixo (up-down) pelos estados”, afirmam.
O B-Money seria o pontapé inicial para o Bitcoin. Mas antes seria necessário um sistema para sustentar toda essa descentralização com segurança e aqui entra o nome do criptógrafo britânico Adam Back.
Nascimento da Blockchain
Com o seu projeto “Hash Cash”, em 2002 Back tornou a ideia de uma moeda descentralizada factível por um sistema de “proof-of-work” (prova de trabalho), o qual fundamenta atualmente a Blockchain do Bitcoin.
É certo que Satoshi Nakamoto não traz, em seu White Paper, uma linha sequer da palavra Blockchain. Entretanto, faz clara referência do sistema de “proof-of-work” criado pelo criptógrafo Adam Back: “Para implementar um servidor de marca temporal distribuído numa base ponto-a-ponto, precisamos usar um sistema de prova-de-trabalho similar ao de Adam Back Hashcash”.
Mas entre o HashCash e o Bitcoin, havia uma ponte chamada Nick Szabo. Ao criar em 2005, o BitGold, Szabo desenvolveu a peça fundamental para o aprimoramento do sistema “proof-of-work” pensado por Adam Back. Com isso, Szabo trouxe algo semelhante à ideia de Blockchain atual, afastando a possibilidade de um servidor central.
Desta forma, foi trazida verificação de transações e operações pelos chamados “bits de desafio”, por meio do qual há uma cadeia de blocos em que o bloco subsequente depende dos anteriores, formando, por fim, a sequência de prova de trabalho e o “Timestamp” — carimbo de data/hora.
Mudança no mundo
Como qualquer inovação traz resistências, o Bitcoin foi visto como instrumento de fraudes e golpes. O que é tornar uma tecnologia de tal importância em algo barato por mera ignorância.
O fato é que o mundo estava diante daquilo que o economista Joseph Schumpeter chama de “ Destruição Criadora”, a qual segundo Val e Martins advém da “produção de novas tecnologias e instituições que, embora criem novas perspectivas para os demandantes, acaba tornando obsoletas as tecnologias e instituições anteriores, o que revelaria também um movimento de desconstrução, destruidor”.
Não parece, no entanto, que algo inovador coloque em desuso o que já está existente. Mas quem imaginaria novas gerações trocarem seus computadores por máquinas de escrever ou a internet com Inteligência Artificial por bibliotecas de livros impressos?
Nas Finanças e na matéria monetária, cabe o mesmo imaginário. Não precisa ir tão além. Basta imaginar alguém preferir o cheque pré-datado ao cartão de crédito.
Nessas mudanças, os Estados também mudaram e vêm procurando criar suas próprias criptomoedas. Em outros termos, as moedas fiduciárias digitais com proteção criptográfica.
Outros Estados como El Salvador e Cuba decidiram adotar os Ativos Digitais Criptografados como moedas. El Salvador foi mais audaz nessa matéria e trouxe o Bitcoin como moeda de curso legal e forçado. Já Cuba, apenas como de curso legal.
Essas decisões trazem mudanças geopolíticas uma vez que colocam o dólar estadunidense cada vez menos como a moeda mundial.
Nisso, o Direito também tem mudado seu olhar sobre o Bitcoin. Principalmente no campo regulatório. Ao invés de proibir e ir de encontro, por que não acompanhar de perto toda essa constante e veloz mudança?
Evolução acompanhada pelos reguladores
O Direito por essência é conservador e desta forma busca regular todo o mundo ao redor. Antes, porém, há de se ter a compreensão da natureza jurídica do objeto a ser regulado. Em outros termos, dizer o que é o que e o porquê.
Mesmo antes de compreender o Bitcoin e todo o universo que o cerca, o próprio Estado acompanhou sua evolução. No Brasil, adotou a tecnologia para implementar o Drex. Essa criptomoeda funcionará no sistema da Blockchain ERC-20 da rede Ethereum.
O fato é que o Bitcoin pode ser usado para inúmeros fins, sejam legais ou não. Isso não quer dizer que trata-se de um objeto ilícito. Se assim fosse, o dólar e o ouro deveriam de ser proibidos tendo em vista o uso para lavagem de dinheiro e evasão de capitais.
Apesar das empresas que custodiam e ou negociam os Bitcoins e outros Ativos Digitais Criptografados serem reguladas pela Lei nº 14.478/2022, ainda não há regulação desses ativos em si.
Ativos Digitais Criptografados e o Direito
Como o Direito se comporta então? Aqui cabe separar o Bitcoin dos demais ativos. Mas antes, porque não falar de todos que vieram após e passaram a ser chamados de ativos virtuais ou criptoativos.
Parece ser a melhor opção chamá-los de Ativos Digitais Criptografados porque são ativos que surgem em meios digitais e contam com uma proteção criptográfica de uma Blockchain. Nisso, se tem os criptoativos; stablecoins e NFTs.
Em breves palavras, criptoativos são aqueles que não possuem lastro mas nem todos são descentralizados como o Bitcoin. Há alguns em que o sistema se assemelha mais a uma Assembleia de acionistas com poder de voto, conforme sucede com os masternodes. As stablecoins, criadas para resolver o problema da alta volatilidade dos criptoativos, possuem lastro em commodities ou moedas fiduciárias que gozam de estabilidade à exemplo do dólar. Mas nem sempre são colaterizadas. Por fim, os NFTs se assemelham aos bens não fungíveis, via de regra.
Para cada um deles, o Direito já traz resposta. Ao criptoativo se aplicaria geralmente ao que se entende como commodity em geral se for no caso do Bitcoin. Já aqueles em que há alguma centralização, seria mais palpável as regras da Lei nº 6.404/1976 ao que tange as ações com direito de voto como sucede nas Sociedades Anônimas de Capital Aberto.
Os NFTs no Direito brasileiro enquanto bens não fungíveis estariam abarcados no art. 85 do Código Civil (Lei nº 10.406/2002).
Regulando o desconhecido
Entretanto, para piorar a vida dos reguladores não há como deixar isso numa linha fixa pois o Bitcoin, por exemplo, pode ser usado até mesmo como moeda social. Para os professores de Direito da USP, doutores Rachel Sztaijn e Milton Barossi Filho, as moedas sociais
No artigo, “Natureza Jurídica da Moeda e Desafios da Moeda Virtual” , Sztajn e Barossi Filho esclarecem, no entanto, que determinado ativo só será considerado uma moeda social se houver o aval do Estado. Assim, o Bitcoin carece deste requisito no Brasil.
Por outro lado, esse ativo já vem sendo visto desde 2018 como possível objeto de penhora em ações judiciais. O professor de Direito Processual Civil e desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Alexandre Câmara, já apontava para essa hipótese.
Apesar de esse jovem de 16 anos ainda ser um tanto desconhecido para o Direito. Isso não exclui a atuação do Estado em algumas imposições. Entre elas, a obrigatoriedade em informar a Receita Federal das transações sucedidas pelos brasileiros com o Bitcoin e outros Ativos Digitais Criptografados até mesmo no exterior conforme consta na Instrução Normativa nº 1.888/2019.
Tampouco afasta a fiscalização da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) quando houver emissão de Initial Coins Offerings (ICO) ou até mesmo de investimentos indiretos no próprio Bitcoin que se amolde à contrato de investimento coletivo nos termos do art. 2º, IX, da Lei nº 6.385/1976.
Nesse mesmo prisma, cabe a CVM ainda fiscalizar o uso desses ADCs como lastro para contratos futuros ou derivativos, conforme apontado no art. 2º, VII e VIII, da Lei nº 6.385/1976. Muito menos faz com que o Banco Central feche os olhos e deixe de emitir alertas como o Comunicado 25.303/2014 em que diferenciou esses ativos das moedas eletrônicas.
Bitcoin e Drex
Entretanto, nada impossibilita de o Estado usar o sistema de um criptoativo para criar sua CBDC. Não haverá confusão entre o cripativo e a criptomoeda que usa o sistema daquele. O exemplo mais palpável do momento é o Drex.
Essa moeda digital criptografada usa o sistema da rede Ethereum, mas isso não significa afirmar que o Ether e o DREX sejam a mesma coisa. O primeiro é um criptoativo sem garantia do Estado (como também é o Bitcoin), enquanto o segundo será uma moeda emitida pelo Banco Central em formato digital e sob proteção criptográfica.