As oscilações incessantes na cotação do bitcoin tem feito muita gente se perguntar se vale a pena se envolver com criptomoedas. E não estou me referindo a “investimento” em criptoativos. A diferença entre investimento e especulação é uma lição que o grande público tem aprendido rápido.
Aprender o básico para poder operar com a novidade criptográfica já é um “custo operacional” relevante para quem quer se familiarizar com a web 3.0. Raras são as pessoas que nunca cometeram erros ou perderam dinheiro com criptomoedas.
Mesmo nos círculos mais formais de San Francisco e Silicon Valley a frustração é a mesma que em qualquer outro lugar. Na verdade a mística que envolve o pessoal letrado em programação e desenvolvimento de software só ajuda a elevar a ansiedade ainda mais.
[lwptoc]
Eis a questão
Nesse clima de perplexidade uma questão tem sido levantada com muita frequência.
Afinal, qual é objetivo de tudo isso?
Não pretendo esgotar o assunto ou estabelecer uma palavra definitiva. Pelo contrário, de tempos em tempos é importante voltar às origens e relembrar como chegamos até aqui.
“Aquele que controla o volume de moeda de um país passa a ser o senhor absoluto de toda indústria e comércio (…).” James A. Garfield. Presidente americano assassinado. Circa 1881.
Pra quê bitcoin?
A motivação por trás da criação de uma moeda digital, descentralizada e autônoma é libertar a parte real da economia do poder do Estado e do mercado financeiro.
Esses agentes, representados pela elite governante e pelos tecnocratas, pouco contribuem com o “produto social”. Em contraste alguns podem argumentar sobre a imprescindível necessidade do gerenciamento da riqueza e de organização da vida dos cidadãos.
Para obter uma visão mais clara precisamos seguir os rastros da turma do Cypherpunks, especialmente Nick Szabo, o inventor dos smart contracts e do bitGold, um dos precursores do Bitcoin.
Segundo esse pessoal a mudança do “contrato social” só seria alcançada através do uso da criptografia e das tecnologias que promovem a privacidade. Portanto, o objetivo final da rede Bitcoin seria eliminar a dependência de um poder central que controla a emissão de dinheiro.
“Permita-me emitir e controlar o dinheiro de uma nação e pouco me importa quem faz as leis.” Mayer Amshcel Rothschild. Fundador da dinastia Rothschild
Como assim?
Controlar a emissão de moeda seria uma oportunidade para a população reivindicar seu papel. Seria recuperar o poder decisório na elaboração das políticas fiscais e econômicas derivadas dessa atribuição do Estado e da Casa da Moeda.
Toda vez que o governo, ou o banco central emite moeda o que se está emitindo é um título de dívida pública. No fim das contas, todos têm que pagar os juros sobre essa dívida e assim fazemos através do pagamento de tributos.
Para pagar tributos a grande maioria da população tem que trabalhar e auferir renda. Em última análise, o simples uso do “dinheiro” nos transforma em subordinados de um soberano, só que versão iphone.
O princípio
Lembremos que tributo é um conceito que engloba os impostos, as taxas e as contribuições de melhorias. Dentre esses tributos, os impostos são pagos sem nenhuma contraprestação por parte do Estado.
O imposto é pago pela população simplesmente para manter a máquina pública, cargos, pensões vitalícias e os atuais padrões de saúde, educação e segurança. Sem entrar em detalhes, vale adicionar que o Estado não poderia montar esse esquema global sem a ajuda de outro protagonista: o banqueiro.
“Bancos criam crédito simplesmente aumentando o valor oferecido ao prestamista na sua conta corrente.” Paul Tucker, Presidente do Banco da Inglaterra
O financiador das monarquias e das guerras, assim como do progresso econômico das nações é um agente importante nessa engenharia financeira. O banqueiro é o responsável por organizar o funcionamento da economia através do sistema monetário.
Mas o banqueiro também precisa ser “remunerado” por sua contribuição. À ele o Estado concedeu a atribuição exclusiva de desempenhar duas atividades muito especiais: a criação de moeda escritural e a oferta de crédito. Para quem quiser entender mais sobre esse mecanismo de transferência da riqueza veja os termos: reserva fracionada, depósitos compulsórios e quantitative easing.
“Quando alguém assina um cheque, esse alguém precisa ter dinheiro na conta para cobrir o valor prometido, mas quando o banco central faz o mesmo não há conta corrente para debitar a promessa de pagamento. Quando o banco central assina um cheque, na verdade ele está emitindo moeda.” Federal Reserve Bank of Boston, livro ‘Putting It Simply’ (1984)
Sem economiquês
Moeda escritural ou “fractional-reserve banking” permite que os bancos “criem” moeda sem nenhum lastro. Talvez por isso a expressão “moeda fiat” tem se tornado tão popular.
Isso porque um dia alguém descobriu que para manter um banco em funcionamento, o banqueiro não precisa manter a totalidade das suas obrigações perante os depositantes em “espécie”.
Errata – De acordo com a fonte consultada o testemunho original dado no Congresso americano cita: “Money is gold, and nothing else.” J.P. Morgan, 1912. Tradução: Dinheiro é ouro, o resto é resto.
Assim como Deus criou a luz dizendo “Fiat Lux” (Gênesis 1:3), banqueiros ao redor do mundo tem criado impérios. O caso é ainda mais sério ao observar o Federal Reserve, o banco central americano. A “impressão” de moeda tem mostrado uma trajetória sem precedentes.
Toda justificativa é nobre. A emissão de veículos de crédito serve para estimular o setor produtivo. No entanto, Rússia e China notaram esse movimento e vêm comprando ouro como se não houvesse amanhã.
Entra em cena a criptomoeda
Quando se fala em bitcoin, a cripto-moeda, na verdade o que se propõe é uma revisão de todo esse ciclo de transferência e apropriação de valor através do débito.
Uma moeda capaz de circular de forma distribuída elimina o papel do atravessador exercido pela compensação bancária, ou “clearing house”. Na rede Bitcoin, o algoritmo de consenso exerce essa função, e por isso cada “minerador” é remunerado através do pagamento de uma pequena taxa. Saiba mais sobre o funcionamento da rede Bitcoin clicando aqui.
“Se o débito não existisse no sistema monetário, o dinheiro simplesmente não existiria” Marriner Eccles, Presidente Fed, circa 1941
Além do mais, uma vez executada, a transação bitcoin não deixa saldos entre entidades. Como resultado o controle e oferta do crédito deixa de ser atribuição exclusiva do banco. A rede Bitcoin passa a ser o agente de custódia*.
E quando o controle da base monetária ocorre de forma autônoma (o número de bitcoins é limitado a 21 milhões), o Estado perde a prerrogativa de autoridade central na criação e oferta de moeda. Trocando em miúdos, o Estado não pode mais contrair dívida em nome de terceiros, a população.
“O banco se beneficia de juros sobre todo o dinheiro que cria do nada.” William Paterson, Juiz da Suprema Corte americana, circa 1745
Será mesmo?
A aceitação generalizada de bitcoins teria efeitos na maneira como o Estado administra suas receitas. Num mundo sem CPF ou CNPJ o recolhimento de impostos seria no mínimo diferente. Pra não dizer, desafiador.
Ao conceber a rede Bitcoin, Satoshi Nakamoto talvez tenha imaginado um lugar onde a emissão de títulos de dívida pelo Estado não teria justificativa. Se o Estado não detém o controle na emissão de moeda, reformas orçamentárias teriam outro significado.
Sabemos que a criptomoeda bitcoin preenche todos os requisitos para ser usado como moeda: reserva de valor, unidade de medida, meio de troca. E desde que a infra-estrutura continue funcionando bitcoins são transferíveis, divisíveis, uniformes e têm oferta limitada.
“Ainda bem que o povo não entende como o nosso sistema bancário e monetário funcionam. Se eles entendessem, eu acredito que haveria uma revolução amanhã antes do amanhecer” Henry Ford
Não podemos especular como será a organização do Estado no dia em que bitcoins serão amplamente aceitos. O que sabemos é que por mais de 200 anos, desde a formação das primeiras repúblicas democráticas modernas, indivíduos têm cerceado, ou impedido, a população do controle do dinheiro.
A rede Bitcoin deixa essa mensagem clara e ao mesmo tempo oferece uma alternativa. Para o cidadão comum pagador de impostos ver uma atuação mais responsável do seu representante seria reivindicar seu papel. Ou seja, o indivíduo passa a ser o ator central da sociedade através do voto. Quando o poder emana do povo, o servidor público não se chama governante.
* Existem várias iniciativas envolvendo custódia e títulos futuros lastreados em cripto ativos (veja Bakkt).