ABCRIPTO

De “Not Your Keys” à governança: como o cripto amadurece

Share

No universo das criptomoedas, repetimos o mantra “not your keys, not your coins” à exaustão. Trata-se de um princípio fundamental de soberania digital. No entanto, à medida que o setor amadurece e instituições tradicionais entram no jogo — como ocorreu com a aprovação dos ETFs de Bitcoin, a ascensão da tokenização de ativos reais (RWA) e o crescente interesse institucional em custódia qualificada — surge uma pergunta ainda mais profunda: quem governa os processos e os dados que dão integridade a esses ativos?

Enquanto a Web3 sustenta uma narrativa de soberania individual absoluta, o mundo corporativo opera sob outro eixo: responsabilização auditável. Para que o mercado cripto deixe de ser o “Velho Oeste” digital e se consolide como infraestrutura financeira global, ele precisa dialogar com frameworks que há décadas sustentam o sistema financeiro tradicional.

Três deles são centrais nesse processo:

Compreender essa tríade não é teoria corporativa entediante. Pelo contrário: é a única barreira real contra novos colapsos estilo FTX e o caminho mais sólido para projetos DeFi que desejam sobreviver à regulação e ao teste do tempo.

1. O Alicerce da Governança: DAMA-DMBOK

O DAMA-DMBOK (Data Management Body of Knowledge), desenvolvido pela DAMA International, é o guia de referência global em governança de dados. Ele não trata apenas de armazenamento, mas estabelece como dados devem ser tratados como ativos estratégicos, com ciclo de vida, qualidade, segurança e responsabilidade claramente definidos.

O framework estrutura a governança em 11 áreas de conhecimento, representadas pela conhecida “Roda da DAMA”, com Governança de Dados no centro. Para exchanges, DAOs e emissores de stablecoins, ignorar esses princípios é assumir riscos operacionais e jurídicos desnecessários.

1.1 Propriedade de Dados: corporativo vs. Web3

Aqui nasce a maior fricção conceitual do mercado cripto.

No DAMA-DMBOK, “Data Ownership” não significa posse física do dado. Significa accountability. O Data Owner é um executivo responsável pela qualidade, segurança e uso dos dados (por exemplo, dados de KYC), enquanto o Data Steward executa a governança no dia a dia.

Na Web3, por outro lado, a lógica é técnica: quem detém a chave privada exerce controle soberano. A propriedade é literal.

O problema surge quando projetos centralizados tentam operar infraestrutura Web3 sem aplicar governança corporativa. Em exchanges centralizadas, o CEO ou CISO deve atuar como Data Owner das chaves mestres. Quando essa responsabilidade falha — como em FTX ou Celsius — os fundos desaparecem. Não por magia, mas por ausência de governança de dados mestre e segregação clara entre ativos próprios e ativos de clientes.

2. A Camada de Defesa: NIST Cybersecurity Framework

Se o DMBOK define quem responde pelos dados, o NIST Cybersecurity Framework (CSF 2.0) define como protegê-los. No mercado cripto, onde transações são irreversíveis, segurança não é um “extra”: é o próprio produto.

O NIST organiza a segurança em cinco funções essenciais:

  • Identificar (Identify): mapear ativos críticos, wallets, acessos e riscos.
  • Proteger (Protect): controles de acesso, MPC, HSMs e segregação de funções.
  • Detectar (Detect): monitoramento contínuo e detecção de anomalias on-chain.
  • Responder (Respond): planos de resposta a incidentes e comunicação de crise.
  • Recuperar (Recover): continuidade operacional, seguros e provas de reserva.

Sem NIST, a governança defendida pelo DMBOK perde eficácia, pois os dados — e os ativos — continuam vulneráveis à exfiltração.

3. A Camada Regulatória: FATF e a Travel Rule

Enquanto DMBOK e NIST organizam a casa, o FATF (GAFI) impõe regras para convivência com o sistema financeiro global. No universo cripto, a diretriz mais relevante é a Travel Rule.

Ela exige que VASPs / PSAVs compartilhem informações de origem e destino em transações acima de determinados limites (geralmente USD 1.000). O desafio é evidente:

  • Como transmitir dados pessoais (PII) com segurança entre plataformas concorrentes?

  • Como garantir qualidade e interoperabilidade desses dados sem expô-los on-chain?

Aqui, governança deixa de ser opcional. Sem estrutura de dados robusta, o VASP é simplesmente excluído do sistema bancário tradicional. A Travel Rule força o cripto a adotar padrões de dados, interoperabilidade e rastreabilidade — exatamente os pilares do DMBOK e do NIST.

A convergência inevitável

O mercado cripto está migrando da especulação para a infraestrutura. Nesse novo estágio:

  • Governança (DMBOK) define responsabilidade e integridade dos dados;
  • Segurança (NIST) protege ativos e sistemas;
  • Compliance (FATF) garante continuidade regulatória.

A verdadeira soberania digital do século XXI não é apenas possuir a chave privada, mas operá-la dentro de um ambiente onde governança é clara, segurança é auditável e conformidade é respeitada.

Projetos que entenderem que gestão de dados é gestão de ativos estarão entre os vencedores da próxima década. Os demais, inevitavelmente, servirão como estudos de caso do que não fazer.

Ganhe até R$ 100 ao se cadastrar na melhor corretora de criptomoedas para traders do mundo. Acesse: Bybit.com
Siga o Livecoins no Google News.
Curta no Facebook, TwitterInstagram.
Laura Viana

Advogada e Legal Counsel em Tech. Pós-graduada em Corporate Finance e mestranda em Legal Tech (Middlesex Dubai). Especialista em Direito Digital, Compliance, Blockchain e IA. Unindo inovação e segurança jurídica.

Comentários
Autor:
Laura Viana