O Bitcoin parece ser uma tendência global inclusive para reduzir a dependência do dólar. Isso foi feito por El Salvador, Cuba e agora a Rússia e o Brasil já apresentam projetos nesta linha.
A questão, contudo, ganha outro contorno quando o interesse parte do Brics+ para a desdolarização. Tanto que os EUA responderam ao bloco com ameças tarifárias. Sob tal cenário, resta saber até que ponto o Bitcoin pode mexer nas estruturas geopolíticas atuais e em que aspecto isso afeta o Brasil.
O caso mais recente envolvendo Bitcoin e Estado aconteceu no último dia 10 em que o presidente da Argentina, Javier Milei, fechou um acordo com o presidente de El Salvador, Nayib Bukele, em compras do criptoativo.
Esse acordo foi feito um dia após, o deputado integrante do partido Novo Povo da Rússia, Anton Tkachev, propôr a criação de uma reserva em Bitcoin para proteger o país da instabilidade geopolítica. Ele mencionou que esse Ativo Digital Criptografado não está sujeito às sanções econômicas.
No Brasil, ainda em novembro, o deputado federal Eros Biondini (PL-MG) já havia utilizado argumento parecido ao de Tkachev com a apresentação do seu projeto de lei (PL) nº 4.501/2024 no último mês para instituir a Reserva Estratégica Soberana de Bitcoins (RESBit).
A situação, porém, já tem ganhado outras nuances quando o posicionamento vem do Brics+. O bloco não descarta o uso desses ativos para a desdolarização de seus nove países membros, incluindo o Brasil.
Tal notícia desagradou Donald Trump. No último mês, ele usou o “X” para ameaçar os países do bloco com 100% de tarifas sobre seus produtos caso isso ocorra. Em resposta, a porta-voz da Embaixada da China nos EUA, Liu Pengyu, disse à Newsweek que os EUA usam o dólar como ferramenta para manipular as economias pelo mundo.
Bitcoin no Brics+
Em março deste ano, a China e a Rússia deixaram claro em adotar os criptoativos de maior expressão como Bitcoin e Ether para se proteger das ações do Federal Reserve que indicavam “morte do dólar estadunidense” com impressão desacelerada de dólares, segundo a Forbes.
Nisso, os países do Brics+ (Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul, Emirados Árabes Unidos, Irã, Egito e Etiópia) teriam um sistema comum de pagamento baseado nos Ativos Digitais Criptografados no lugar do dólar dos EUA. Essa política ainda poderia se estender aos 13 outros países parceiros como Bielorrússia, Malásia, Indonésia, Turquia e Cuba.
O projeto não está esquecido e a Rússia tem se mostrado bastante interessada. Em outubro deste ano, durante reunião da cúpula do Brics+, o presidente russo Vladimir Putin propôs o uso do Bitcoin como saída para sanções contra a Rússia.
Na ocasião, Putin disse que o dólar era usado como arma política e que os países do Brics+ deveriam buscar alternativas. Ele, então, ao tratar de novos caminhos para a cooperação econômica dos Estados Membros do bloco, sugeriu o uso de criptoativos como mais promissor.
Vladimir Putin, nesse mesmo período, chegou a pressionar a presidente do Banco de Desenvolvimento do Brics, Dilma Rousseff, para agilizar o processo de aumento do capital. Ele havia até mesmo sugerido um pool de moedas de reserva, sem especificar quais.
No entanto, em entrevista cedida ao U.S. Chamber Of Commerce, o economista Sergey Aleksashenko, que foi o primeiro vice-presidente do Conselho do Banco Central russo e vice-ministro das finanças da Rússia, apontou a possibilidade de adotar criptoativos, uma vez que a Rússia tem enfrentado bloqueios para receber Dólares e Euros.
A China é mais discreta e apenas sinaliza a importância de reservas de valor que reduzam a dependência do dólar.
Preocupação dos EUA
Toda essa movimentação do Brics+ incomodou Donald Trump. Parece estranho a reação do presidente eleito nos EUA, uma vez que em campanha se intitulou como defensor do Bitcoin.
Ele serviu até de influência ao candidato à presidência da Polônia Sławomir Mentzen que prometeu adotar o Bitcoin como um ativo de reserva estratégica para o país.
A postura de Trump, no entanto, não é contraditória. Uma coisa é deter um ativo escasso (apenas 21 milhões de unidades) a fim de manter seu imperialismo. Isso mesmo levando em conta o fato de o dólar ser considerado a reserva de valor global.
Outra coisa, porém, é permitir um bloco que cada vez ganha mais expressividade no mundo pôr em xeque a força da moeda fiduciária estadunidense. Apesar de ainda não ter se mudado para a Casa Branca ainda, Trump tem agido como se já estivesse em exercício. Mas isso é normal para conquistar o seu eleitorado. Talvez a ameaça de tarifar em 100% os produtos oriundos dos países do Brics ultrapasse a mera preocupação e possa ser interpretado como desespero.
No último dia 2, Arkham Intelligence encontrou transferências da carteira dos EUA em cerca de R$ 9,4 bilhões (US$ 1,92 bilhão) em Bitcoin para novas carteiras, dividindo os valores em duas transações: uma de R$ 4,7 bilhões e outra de R$ 4,6 bilhões. Essas transferências trouxeram a especulação de que a administração de Joe Biden estaria vendendo os ativos antes de Trump assumir a presidência.
As transferências sucederam muito depois de a Senadora Cynthia Lummis apresentar o projeto“Bitcoin Act of 2024” (julho deste ano), o qual traz na “Seção 5.1.A” a meta de obter 1 milhão de Bitcoins em cinco anos. Na época, segundo a Forbes, os EUA já possuíam 207 bitcoins.
Força do Brics+
O Brics+ é composto atualmente por 22 países, sendo destes 9 Estados-Membros com certa expressão no cenário econômico global e têm ganhado cada vez mais força econômica.
De acordo com dados do FMI e do World Wide publicados na Statitista, o total mundial da participação do produto interno bruto (PIB) na paridade do poder de compra do Brics+ tem crescido enquanto do G7 tem apresentado declínio. Esse método mede os PIBs internacionais excluindo as distorções causadas por diferentes taxas de câmbio etc., o que traz mais assertivamente a participação na produção do PIB mundial e consegue trazer mais fielmente o retrato do desenvolvimento de cada país ou grupo de países.
Em 2000, o Brics+ pontuava 21,37% do PIB enquanto o do G7 era de 43,28%. Mas essa diferença sumiu em 2007 e ambos estavam em 31,77%. A partir de então o G7 tem feito um movimento em queda batendo em 2022 no percentual que não chega a 31% enquanto o bloco até então formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul já ultrapassavam os 34%.
A prospecção apresentada pela pesquisa do Statista era de que em 2024, após a entrada dos Emirados Árabes Unidos, Irã, Egito e Etiópia e dos 13 países parceiros, o Brics+ ultrapassasse os 35% da participação mundial na produção do PIB mundial.
O bloco, de acordo com dados publicados em outubro deste ano no Statista, detinha 45% da população mundial, cerca de 30% da produção global de petróleo, sendo que havia a prospecção de esse percentual chegar a quase 50% com a entrada do Irã e Emirados Árabes Unidos.
Além disso, a mesma publicação trazia os nove Estados-Membros do Brics+ como responsáveis por 22% do mercado global de exportação em 2023. Quase 1/3 deste percentual vinha da China.
Arábia Saudita no meio
A agência Reuters, em janeiro deste ano, noticiou a entrada da Arábia Saudita para o Brics+. No último dia 14, o site Economics apontou que a chegada tanto deste país como dos Emirados Árabes já teria um crescimento na produção de petróleo ultrapassando a 43,1%, sem contar com 53% do manancial de reservas.
Segundo dados da Energy Institute, no Statistical Review of World Energy 2024 e pelo Eni, no World Energy Review 2024 divulgado pela Agência Nacional de Petróleo (ANP), o Oriente Médio concentra a maior parte das reservas mundiais, atingiu 873,6 bilhões de barris (48,7% do total mundial) e apresentou crescimento de 0,2% em 2023, em relação ao ano anterior.
Nesse contexto, só as reservas sauditas, que não apresentaram crescimento, totalizam 267,2 bilhões de barris (14,9% do total mundial), o que deixa a Arábia Saudita na segunda posição do ranking mundial de reservas provadas de petróleo, perdendo tão somente para a Venezuela. O Brasil ocupa a 15ª posição nessa categoria. Já a América do Norte, incluindo os EUA, tem 263,5 bilhões de barris (14,7% do total mundial).
Já quando o quesito é produção de petróleo, a Arábia Saudita ostenta o posto de segundo colocado no ranking global com produção média de 11,4 milhões de barris/dia (11,8% do total mundial), um decréscimo de 6,6% ante 2022. Em seguida, vieram Rússia (11,4% do total mundial), Canadá (5,9% do total mundial) e Irã (4,8% do total mundial).
Apesar de os EUA ser o primeiro colocado nesse ranking, com volume médio de 19,4 milhões de barris/dia (20,1% do total mundial), a soma da produção da Rússia, Irã e Arabia Saudita (três países do Brics) ultrapassa em 8% a dos EUA, sem contar que o Brasil, que situa na 9ª posição, teve crescimento de 11,8% no volume de petróleo produzido, totalizando 3,5 milhões de barris/dia (3,6% do total mundial).
Multilateralismo Global
A questão é saber se a entrada da Arabia Saudita mudará as negociações com os EUA e o que poderia acontecer caso o Brics adotasse o Bitcoin como moeda comum, conforme sinalizou Vladimir Putin. Um ponto não dá para excluir: a configuração mundial tem mudado. O que antes se dava por políticas bilaterais entre um Estado e outro não já não cabe mais. E o que se tem é um multilateralismo não só de acordos mas de poder global.
A prova disso está na Declaração de Kazan, assinada em 25 de outubro deste ano na Rússia. Por meio deste documento, o Brics+ trouxe a importância de fortalecer o multilateralismo pelo desenvolvimento e segurança do Sul Global. A Declaração de Joannesburgo II, assinado em 23 de agosto do ano anterior, já buscava um fortalecimento dos países do Brics e sinalizava a importância do multilateralismo inclusive com poder na Organização das Nações Unidas (ONU).
Essa ideia de ter um mundo mais global em debates não é novidade. Em 1968, com a Comissão Pearson se buscou a participação mais eficaz de países em desenvolvimento, conforme descrito no artigo “ O papel da ONU e do Banco Mundial na Consolidação do Campo Internacional de Desenvolvimento”, da pesquisadora Sênior no Centro Brasileiro de Relações Internacionais (CEBRI), Fernanda Cimini Salles.
Muito foi discutido sobre o papel desses países chamados periféricos na mudança de paradigmas no mundo. No entanto, ainda vigia o acordo de Bretton Woods e o Fundo Monetário Internacional (FMI) era muito bem alimentado por dólares. Resultado: os acordos entre nações não passavam de algo proforma do Direito Internacional. A vontade geral era aquela que os EUA ditavam.
Mesmo após o fim de Bretton Woods, na década de 1970, a situação não mudou muito.
Novo desenho geopolítico
A questão é que a busca pela desdolarização retira aquela sensação de dependência do Sul Global, conforme já vinha sido tratado por estudiosos da América Latina como o professor Ruy Mauro Marini em sua obra Dialética da Dependência e também do jornalista uruguaio Eduardo Galeano em As Veias Abertas da América Latina.
Uma coisa é que devemos nos ater ao chamado Realismo Político nas Relações Internacionais o que é bem tratado por Hans Morgenthau. O cientista político judeu-alemão naturalizado nos EUA teceu críticas ferrenhas ao idealismo das relações internacionais ainda no final da década de 1940. Ele apontou que os Estados vão buscar defender os seus interesses a qualquer custo. Deste modo, a ideia de países menores que compõem o Brics ainda que se livrem da dolarização podem cair nas mãos do poderio de outras nações incluindo a China ou a Rússia.
Influência global do Brics+
A União Europeia já mostrou preocupação com o crescimento do Brics+ e sua influência na política internacional. O parlamento europeu, em janeiro deste ano, expediu um documento em que aponta a crescente influência do Brics no cenário global. Isso, segundo o parlamento europeu, se daria tanto por conta do crescimento econômico e da participação ativa em organizações internacionais. Lembrando que Rússia e China possuem assento permanente no Conselho de Segurança da ONU, o que lhes confere poder de veto.
No mesmo documento, consta a participação de países como Brasil, Rússia e China no G20. Sem contar que todos os Estados-Membros do Brics, exceto Etiópia e Irã, fazem parte da Organização Mundial de Comércio.
A influência no Banco Mundial de Reconstrução e Desenvolvimento (International Bank for Reconstruction and Development – IBRD) ainda tem sido baixa em comparação com os países que compõem o G7. Em 2023, o grupo dos sete países mais ricos representava 39,7% enquanto o Brics (ainda sem o sinal de “+”) era de 19,3%. Essa métrica se dá pela participação de fundos aplicados no Banco Mundial.
No entanto, há outras organizações financeiras mantidas pelo Brics+. O Banco do Brics e o Acordo de Reserva de contingente são exemplos e pretendem juntos fortalecer as economias dos países do bloco. Há ainda o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (Asian Infrastructure Investment Bank – AIIB), no qual muitos países da União Europeia também participam.
Uma coisa é certa, há uma nova configuração geopolítica. Os EUA não são mais os únicos a ditar regras e apesar do egoísmo dos Estados em atingir seus interesses pessoais, há contraditoriamente o fortalecimento de blocos.
Bitcoin: oportunidade ou ouro de tolo?
A corrida pelo Bitcoin nesse novo desenho geopolítico pode não indicar o genuíno interesse desses países nesses ativos especificamente. Ao invés disso, pode indicar mero blefe por parte de alguns Estados. Outros podem querer adquirir algo escasso apenas para controlar todo o mercado.
Seja de um jeito ou de outro, vale mencionar que há apenas 21 milhões de Bitcoins. Alguns estão perdidos. E o valor desse ativo não é intrínseco em si, mas depende da fé depositada nele.
A China não se posiciona e defende a criação do Yuan, mas nada impossibilita esse país de fazer aquisições às escondidas. Já os EUA e Rússia fazem suas apostas como se o mundo ainda estivesse vivendo uma guerra fria.
Mas até que ponto o Bitcoin pode ser considerado ouro digital e não apenas ativos como tulipas holandesas? A escassez trazida por Satoshi Nakamoto responde essa questão. Além disso, a possibilidade de desestruturar todo o sistema e inflacionar a produção deste ativo seria quase nula. Para tanto, teria de existir um supercomputador quântico dotado de imensa inteligência artificial, o qual ainda está no mundo das ficções.
Enquanto isso não acontece, há uma tendência de usar o Bitcoin como ferramenta para a desdolarização. Cuba, que agora é país parceiro desse bloco, tomou a decisão em face aos embargos impostos pelos EUA. El Salvador, que tinha como moeda oficial o dólar, era totalmente dependente dos EUA e atualmente possui uma economia desdolarizada. A Argentina parece estar buscando o mesmo.
Deste modo, o Bitcoin pode trazer um novo desenho geopolítico caso os países do Brics+ o utilizem como reserva estratégica ou adotem como moeda comum. E moeda é aquilo que o Estado diz que é.
E o Brasil?
Os EUA, contudo, procuram não largar o posto de liderança global em face da ameaça de desdolarização da economia dos países do Brics+. A questão é que no meio desse conflito de discursos que envolve de um lado a ameaça de taxação em 100% os países do Brics e do outro a busca pela ascensão econômica da China e Rússia, está o Brasil.
O país é Estado-Membro do Brics desde a sua fundação e o de maior expressividade no Mercosul — bloco que recentemente fez um novo acordo com a União Europeia (UE). O Brasil, de certa maneira, tem também uma certa dependência comercial com os EUA. Em assuntos diplomáticos, o país tem estabelecido o papel de moderador de conflitos evitando a intromissão interna em outros Estados. Isso ficou clarividente quando assumiu a Embaixada da Argentina na Venezuela durante a crise desencadeada por atos antidemocráticos após a eleição suspeita de Nicolás Maduro.
Porém, a questão desse embate entre Brics+ e EUA, envolve diretamente o Brasil. Ao mesmo tempo a presidente do Banco Brics é do Brasil (Dilma Rousseff), trata-se de um país com grande força econômica. O Brasil possui grande riqueza de recursos naturais como água potável e variedade de ecossistemas. Sem contar o seu manancial que pode favorecer inclusive a produção de energia limpa, emissão de créditos de carbono para reflorestamento e manutenção da biodiversidade.
Quanto ao Bitcoin, o Brasil tem se mostrado cauteloso e parece escolher o diálogo. Mas essa questão regulatória é tema para outro artigo.